Por Marisa Palácio – NUBEA UFRJ e Sergio Rego – ENSP FIOCRUZ
A epidemia pelo coronavírus traz um desafio extra para a saúde mental dos profissionais de saúde. A noção de carga de trabalho da ergonomia francesa pode nos ajudar a pensar num amplo leque de possibilidades de impactos do trabalho sobre a saúde mental dos trabalhadores de saúde. Assim podemos nos aproximarmos de possíveis formas de intervenção. A carga de trabalho para os ergonomistas diz respeito aos recursos que o trabalhador precisa mobilizar para fazer face às exigências do trabalho. Daí Wisner (1994) assinalar os 3 aspectos da carga de trabalho, a carga física, a carga cognitiva e a carga psíquica. No trabalho, como em qualquer atividade, a carga se apresenta nessas 3 dimensões sempre, podendo haver sobrecarga em um aspecto ou outro ou todos. Não deixa, esse autor, de considerar que uma sobrecarga em uma dimensão implica em repercussão nas outras.
Aqui vamos utilizar esse conceito de carga para pensarmos o trabalho dos profissionais de saúde em meio à epidemia de coronavírus. Não sem antes acrescentarmos uma dimensão negligenciada da carga e que, em se tratando de profissionais de saúde é essencial, a carga moral.
A dimensão moral do trabalho em saúde é absolutamente fundamental. Estou chamando de carga moral s aspectos do trabalho em saúde que demandam decisões, que o trabalhador tem que mobilizar não só conteúdos cognitivos relacionados ao fazer técnico, mas também os conteúdos que o permitem tomar uma decisão em consonância com sua estrutura moral.
Aqui cabe uma nota acerca da ação moral: para a ação as pessoas mobilizam conhecimentos e afetos. A decisão acerca do que é bom fazer e o que é justo, envolve essas duas dimensões. Uma discussão que tomou a mídia se é razoável, caso se chegue à situação de ter fila para UTI, limitar o acesso em função da idade - para pessoas acima de 80 - é um exemplo de decisão que faz mobilizar a estrutura moral das pessoas que estarão envolvidas diretamente.
Como lidar com a carga de trabalho?
Entendendo que a carga é sempre uma relação entre as exigências do trabalho e os recursos que se pode lançar mão, de cada trabalhador e coletivamente, é possível fazer um amplo mapa de ações que podem impactar a saúde mental dos trabalhadores de saúde nesses tempos difíceis de coronavírus
Carga física: A pergunta central deve ser como podemos diminuir a carga física de trabalho evitando sobrecarga física, o cansaço, sabendo que a fadiga crônica é um dos elementos centrais relacionados ao sofrimento psíquico dos trabalhadores. 1. No trajeto de casa para o trabalho: Duas alternativas estão sendo pensadas em tempos de transporte público diminuído, a montagem de esquemas alternativos de transporte e a articulação com as FFAA e redes de hotéis próximos aos hospitais. 2. Revendo as rotinas de trabalho de forma a fazer intervalos regulares na jornada para descanso.
Carga cognitiva: A pergunta central é o uso das funções cognitivas no desenvolvimento do trabalho. Desta forma quanto mais treinado é o profissional melhor ele lida com as exigências do trabalho mobilizando percepção memória capacidade de raciocínio. Aqui são fundamentais as informações que em tempos de emergência são sempre novidades, os estudos estão sendo realizados e estão gerando novo conhecimento a todo momento, É preciso que de acordo com a inserção dos trabalhadores da saúde nas cadeias produtivas dos serviços, informações a tempo e a hora sejam distribuídas, desde o vigilante ao dirigente da unidade e todos que estão na linha de frente do atendimento a população. Aqui vai uma preocupação importante: devemos conter a ânsia de solucionar os problemas de pessoal em tempos de recursos muito escassos com o relaxamento das exigências de treinamento. No mínimo podemos pensar em distribuir pessoal com menor experiência sempre junto com outros com mais experiência para que possam se apoiar.
Carga psíquica: A carga psíquica diz respeito aos aspectos do trabalho que podem mobilizar angústia, medo, sensação de desprazer ou desconforto e pode impactar negativamente a autoestima que pode gerar quadros psicossomáticos ou de distúrbios mentais menores ou serem gatilhos para quadros psicopatológicos mais graves. São exemplos as situações de assédio moral, ou qualquer tipo de violência no trabalho, a falta de controle/participação dos trabalhadores sobre seu próprio trabalho, a necessidade de contornar as condições de trabalho precárias para poder realizar de forma minimamente satisfatória seu trabalho, o isolamento social no trabalho (falta de suporte). Em tempos de COVID-19 o medo é muito presente. As informações sobre como se proteger e como evitar transmitir o vírus são fundamentais. Traduzir noções de biossegurança no nível mais simples para as pessoas com baixa escolaridade; fornecer as condições objetivas de segurança com Equipamentos de Proteção Individual para todos os grupos de trabalhadores da segurança, da limpeza, médicos, são exemplos de ações que podem minimizar o medo. Oferecer espaços para troca, estimular grupos de WhatsApp com colegas de trabalho. Constituir grupo para pensar nas formas de organizar o trabalho para diminuir filas, ou oferecer atenção aos pacientes para diminuir a violência de pacientes e familiares (a COVID-19 é uma emergência de características próprias, é preciso pensar em como organizar fluxo de pacientes e organização dos espaços).
Carga moral: A carga moral está relacionada aos conflitos entre códigos e valores éticos na interação humana no trabalho. Temos dificuldades extras nesse terreno porque não estamos acostumados a pensar e discutir questões de ordem ética. Em geral atuamos com o arcabouço ético que construímos durante a vida. Não queremos discutir, ouvir outros argumentos, outras posições. Na área da saúde ainda vigora como valor absoluto a vida. Entretanto, quando não é possível, quando os recursos são escassos, quem vamos salvar? Quem deve decidir?
Para ser possível termos uma visão mais clara do que seria a carga moral do trabalho de um profissional de saúde imaginemos a atuação de um médico em um ambulatório realizando um trabalho rotineiro em um dia qualquer do ano. Seu trabalho inclui conversar com o/a paciente, obter sua história da doença atual e de outras que já tenha tido, saber de seus ambientes de moradia e trabalho e quaisquer outros fatores sociais que possam influenciar sua saúde e decidir que orientação/tratamento recomendará para ele/a. O que poderia afetar uma rotina aparentemente tão agradável? Sem falar no eventual calor provocado pela ausência de um sistema de refrigeração, ou da irritação dos pacientes e seus familiares pelas eventuais demoras e más condições para a espera, e outras variáveis também significativas, pensemos no que poderia aumentar a carga moral associada ao trabalho.
Imaginemos, ainda no ambiente de trabalho ambulatorial, que o paciente não possui recursos próprios para cumprir as recomendações terapêuticas que recebeu! Imaginemos que o sistema de saúde tampouco tem como suprir a essas necessidades! Imaginemos que esse profissional de saúde tenha plena consciência de que o não cumprimento de suas recomendações levará ao agravamento do quadro da enfermidade, podendo inclusive levar o paciente ao óbito ou a uma incapacidade importante. Mas o quadro pode ser ainda mais complicado, já que o profissional de saúde pode ter que escolher quem terá acesso a determinado recurso que seja escasso, ou seja, ele poderá ter que decidir quem viverá e quem não terá a chance de sobreviver. Alguém poderá querer dizer: o conhecimento técnico dará a resposta. Sim, essa ilusão pode existir, mas alguém terá que dizer qual o critério técnico que se utilizará para a decisão. Existirá uma decisão técnica que seja moralmente neutra? Sem dúvida que não. Até o mais complexo algoritmo tem escolhas morais intrínsecas a eles, embora nem sempre elas sejam explícitas. Mas a angústia com a decisão, ainda que supostamente amparada pela falsa neutralidade técnica é quase que inescapável. O conflito entre a realidade de um lado e os valores individuais e ideais morais inerentes à formação e à prática profissional de outro, expressa a carga moral que fica ainda mais relevante em situações de escassez de recursos necessários para essa prática como vivemos com grande frequência no Brasil e agora agravado pela pandemia.
Algumas recomendações: Embora o conhecimento sobre qual ou quais tratamentos são possíveis ou requeridos, seja médico, a decisão sobre qual deve ser implementado em um caso concreto pode e deve ser compartilhada sempre. Sem dúvida em situações de emergência isso é mais difícil. Mas é uma recomendação que uma decisão tomada em equipe é sempre melhor do que sozinho, procure identificar as posições que são ancoradas em preconceito ou em uma religião particular, elas não têm validade universal e devem ser substituídas por aquelas com maior abrangência, torne sempre sua decisão pública para que se possa discutir, ouvir argumentos que possam aprimorar a decisão posterior. Em termos éticos a diversidade e debate de argumentos tornam as decisões melhores.
Considerações finais
Finalizando, as considerações aqui apresentadas, longe de ter feito um quadro completo das dificuldades relacionadas ao trabalho, procurou-se mostrar que para pensar em saúde mental temos que olhar o cenário mais abrangente onde os trabalhadores estão inseridos e nesse contexto de epidemia. Como se procurou demonstrar aqui, os diversos aspectos das cargas de trabalho direta ou indiretamente vão impactar a saúde mental dos trabalhadores e há medidas individuais e coletivas / institucionais que podem ser tomadas para minorar os efeitos nefastos sobre os trabalhadores.
Referência
Wisner A. A inteligência no trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro; 1994.