Por André Martins (NUBEA - UFRJ)

É normal que estejamos apreensivos e com medo, nesses tempos de coronavírus Covid-19, quarentena e reclusão, ao ver o que aconteceu na China, na Itália, na Espanha, no Irã, e constatar que nossa curva de contaminação e mortes se encontra próxima à desses países. Apreensão, ansiedade, tristeza, medo, são neste momento, em graus diferentes para cada pessoa, inevitáveis.

O que faz e o que não faz sentido

 

É normal também que uma das fugas leves e, de um modo geral, saudáveis, seja o riso através de memes, o bom humor. O que não faz sentido algum é a negação, fingir que é uma questão de livre-arbítrio individual, de escolha pessoal, expor-se ou não ao vírus, uma vez que, obviamente, o vírus não permanece apenas nas pessoas que escolheram se contaminar ou se expuseram ao contágio de forma leviana e irresponsável. Muitos contra-argumentam que durante o carnaval ninguém se preocupou com o contágio. Para evitar grandes discussões infrutíferas, digo apenas que, primeiramente, à época do carnaval não havia nem um único caso de contaminação comunitária (de alguém que pegou o vírus aqui), e, enfim, que um erro não justifica o outro. Piadas sugerindo que aqueles que não se cuidam estão se oferecendo para uma seleção natural também não fazem sentido, uma vez que os contaminados por inconsequência transmitirão o vírus tanto para inconseqüentes como para consequentes. O momento é claramente de mobilização e deve ser imperativamente levado a sério. É preciso que a curva de alastramento do vírus seja baixa, sem um pico elevado, para que as mortes sejam em menor número, e o caos na saúde não seja tão drástico quanto tem sido nos países citados.

As ações corretas e a união não dependem de coloração política ou partidária

O discurso da chanceler alemã Angela Merkel do dia 18 de março deixa claro a necessidade de cada nação, de cada povo, se unir para combater o vírus que atinge a todos, pobres e ricos, afins à direita ou à esquerda. O primeiro ministro inglês, Boris Johnson, por sua vez, anunciou um aporte de quase meio trilhão de libras para apoiar os trabalhadores neste período de crise. O discurso do presidente francês, Emmanuel Macron, por sua vez, foi exemplar: “Precisamos amanhã tirar lições do momento que atravessamos, questionar o modelo de desenvolvimento que nosso mundo escolheu há décadas e que mostra suas falhas à luz do dia. O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita sem se exigir condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso estado-de-bem-estar-social não são custos ou encargos, mas bens preciosos, vantagens indispensáveis quando o destino bate à porta. O que esta pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado”. Notemos que são, os três, de partidos de direita – assim como outros governantes de partidos de esquerda também estão mobilizados para o combate à pandemia. Também é de direita o governo da Itália que desde 2019 adotou a Renda de Cidadania que beneficiou cerca de 6% da população do país. O que claramente importa nesses momentos são ações que pensem no coletivo, e não as diferenças ideológicas. No Brasil, o Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e no Rio o Secretário Estadual de Saúde, Edmar Santos (ex-diretor do Hospital da UERJ), parecem de modo geral estar agindo de forma minimamente correta, e a ação é o que importa nesse momento de pandemia em que o próprio presidente brasileiro faz declarações inconseqüentes, duvidando da necessidade e urgência das mobilizações para contenção do alastramento da contaminação.

Nossos afetos

Sabemos que os prognósticos, mesmo com a máxima mobilização, não são bons, se tomamos como exemplo o que ocorre nos países europeus, e em particular na Itália. É normal, mais do que compreensível, e mesmo inevitável, que sintamos medo. Medo de que haja muitas mortes em todas as classes sociais, que pessoas próximas e queridas morram, que a economia abata a população, sobretudo a mais carente, que o país entre em recessão profunda ou durante o surto do vírus, ou uma vez este tendo passado.

Spinoza – cuja filosofia é a mais contemporânea de todas, embora tenha escrito há séculos atrás; ou talvez seja melhor dizer: o filósofo cujas ferramentas conceituais são as mais úteis para lidar com os problemas e questões da vida em geral e da contemporaneidade em particular – observa que o medo é um afeto passivo, uma tristeza que favorece a diminuição de nossa potência de agir, podendo inclusive nos levar à paralisia: e daí, podemos acrescentar, ao pânico, à angústia, à ansiedade generalizada, à depressão.

Mas o que fazer? Como se observa pelas redes sociais, o escapismo, ou, ainda pior, a negação da realidade acaba sendo a saída encontrada por alguns como solução paliativa, mais ou menos inconsciente, para lidar com a impotência diante de um imperativo tão desolador. Negar, é fingir que se trata de uma gripe, que as medidas de prevenção não passam de uma histeria coletiva, etc. Uma das formas de escapismo é a da euforia, por mais que esta não possa estar sendo expressa nesse momento na rua, presencialmente. Outra forma é a do apego à crença de maneira desesperada ou tomando-se a fé como algo mais eficaz do que a ciência. Infelizmente alguns cultos, não só no Brasil mas em todo o mundo, demoraram a aceitar as evidências de que neste momento não se devia aglomerar pessoas. Alguns chegaram a divulgar a ideia de que a fé ou mesmo o comparecimento nos cultos de massa seriam a melhor maneira de se proteger contra o vírus.

Spinoza chama a atenção para o fato de que a esperança é, também ela, um afeto passivo. Mas um afeto passivo que se opõe ao medo. Enquanto o medo é uma tristeza (e toda tristeza é um afeto passivo), a esperança é uma alegria passiva, isto é, uma alegria que não vem de um aumento real de nossa potência, mas de uma contraposição imaginária a uma tristeza. Por sentirmos medo, nos aferramos à esperança de que aquilo de que temos medo não aconteça. O medo, vê-se, nunca diz respeito ao real atual, mas sempre a uma projeção, por mais realista que seja, Tem-se medo somente por algo que está por vir. E neste caso, a esperança, que também só existe em relação a algo que está por vir, torna-se o antídoto para o medo. Embora possa ser providencial em alguns momentos críticos para nos dar uma força suplementar que nos ajude a enfrentar adversidades agudas, a esperança permanece sendo, no entanto, apenas um paliativo, cujo efeito é temporário, sob pena de se tornar uma negação da realidade e uma fuga que no fundo apenas agravará nosso sentimento de desamparo, podendo desembocar em um sentimento de desespero. A esperança pode infelizmente acabar por exercer esse papel de autoengano. O que não quer dizer que a desesperança seja “realista”; nada disso. O que é realista é enfrentar a realidade com os recursos que temos, tanto materiais quanto psíquicos e intelectuais. Em um momento de pandemia como este, os recursos são de nossa cidade, de nosso estado, de nosso país, de nossa cultura, e do planeta como um todo. Se conseguimos que a esperança vença o medo apenas pelo tempo necessário a nos organizarmos psiquicamente, tanto melhor para nossa saúde mental como indivíduos e como coletividade.

Quando sentimos medo, podemos inclusive projetar um mal a tal ponto inexorável que esta ideia vem a nos trazer ansiedade, por vezes angústia, ou mesmo uma síndrome do pânico com sintomas físicos de falta de ar e problemas cardíacos. Mas o que fazer? O ideal é que o medo que possamos sentir – seja por conta dessa epidemia, seja por outros motivos coletivos como a violência urbana, crises econômicas, ou individuais – seja moderado, amenizado, pelo fato de sabermos que aquilo que tememos ainda não é real, e caso se torne real, quanto mais paralisante o medo, pior será; e um medo intenso não ajuda em nada a própria pessoa nem impede que o que se teme venha a acontecer. É importante lembrar que também a ansiedade se dá unicamente por antecipação, normalmente porque um temor presente nos deixa em estado de alerta ao nos remeter a inseguranças e eventos ruins efetivos vivenciados no passado. Ou seja, podemos amenizar a ansiedade ao saber e lembrar que ela é uma reação que diz respeito mais a eventos passados do que a situações presentes ou futuras.

De todo modo, Spinoza acrescenta que até mesmo uma tristeza pode ser boa, dentro do contexto do complexo afetivo que sentimos num dado momento. O exemplo dado é o de momentos em que nos vemos compulsivamente apegados a alegrias passivas, a fugas da realidade, quando então uma tristeza pode nos levar a “cair a ficha”, a realizar que estamos em estado de negação, de fuga de nós mesmos e da realidade, provavelmente tentando, inconscientemente que seja, evitar alguma dor – mas no final das contas provocando com essa fuga ainda mais sofrimento e recalque, de modo autodestrutivo. A tristeza, nesses casos, pode ser como se estivéssemos dizendo a nós mesmos: “chega de autoengano, chega de fachada, chega de defesa, não dá mais para adiar de ter a coragem de encarar de frente a dor e o desamparo, para enfim poder superá-los...”

Por um futuro mundializado melhor

A reclusão que nos foi de certa maneira imposta pela pandemia e por conseguinte o medo diante de suas consequências, das mortes e do estrago que causou e causará durante o tempo de contaminação, assim como do futuro de recessão econômica, de falências e endividamentos que a pandemia nos legará, não necessariamente nos trará, mas pode nos trazer benefícios colaterais fundamentais e preciosos.

Durante sua vigência ficou claro que as universidades públicas são fundamentais para a pesquisa, que não é possível somente importar resultados de pesquisas estrangeiras, que a ciência é imprescindível para uma nação.

Ficou claro que somos uma coletividade planetária, e nela, uma coletividade em cada país, independente de nacionalidade, religião ou ausência de religião, espectro político ou partidário, classe social, sexo, gênero ou raça.

Diferentemente de guerras que unem as nações internamente contra um inimigo comum, uma pandemia nos une a todos, a todas as nações. E dentro de cada nação, estado ou cidade, fica mais evidente o quanto é ruim para todos uma desigualdade social que exige a privação, a miséria, a insensibilidade e a exploração. Numa pandemia, as mortes não são mais diretamente um produto da ação humana, mas algo que vem da natureza, nos lembrando que somos inexoravelmente parte dela, e que para sobrevivermos precisamos estar unidos buscando o bem estar e a dignidade mínima para todos os habitantes de uma cidade, de um estado, de um país, e do planeta.

A reclusão nos obrigou a desacelerar para sobreviver. Nos reensinou a conviver, sem os escapismos do consumismo de produtos e festas.

Certamente não faltarão os que buscarão lucrar com a desgraça social e econômica advinda do estado de calamidade atual. Certamente os governos protegerão os mais ricos e as grandes empresas isentando-os de impostos; certamente o mercado financeiro buscará soluções para desonerar sua parcela de perda neste período. Em um certo sentido, de algum modo, os problemas retornarão e tudo voltará a ser como antes, cada um, incluindo cada país, pensando primeiro no seu próprio pirão.

Mas em outro sentido, não. Pois cada um de nós, cada indivíduo, tem a chance de mudar sua forma de se afetar e de mudar suas ideias afetivas, entendendo por este exemplo marcado na história da humanidade que somos todos frágeis, e que a corrida desenfreada por lucro, a redução de tudo à economia, a exclusão, é ruim para todos, inclusive para os winners desta competição. Neste momento o foco foi a sobrevivência. Se a partir dessa experiência nosso foco passa a ser a da vivência afetiva, da qualidade de nossos afetos, e da empatia para com os outros, não fica difícil aspirar a uma sociedade onde o tempo desacelerado não significa falência financeira. Meus votos são para que este possa ser o desejo de cada vez mais pessoas. No caso do Brasil, que populismos de direita e de esquerda dêem lugar a um desejo coletivo de acabar com a seca, a miséria (diretamente com a implantação de uma renda básica universal ou renda da cidadania; indiretamente com serviços básicos para todos), os altos índices de desemprego, a falta de proteção social, a violência e a tão acentuada desigualdade social Se algo pode mudar, será porque mudou em um número maior de indivíduos o seu desejo de um projeto coletivo comum.

O mundo hobbesiano da guerra de todos contra todos mediada por um governo central, seja ele de esquerda ou de direita, autoritário ou democrático, pode dar lugar a um mundo colaborativo spinoziano onde o governo assume as garantias e proteções básicas à população, os limites da expressão passiva da liberdade, e o favorecimento à expressão ativa da potência de cada indivíduo. Nem todo capitalismo ou economia de mercado precisa ser selvagem, e, vimos agora neste episódio, o estado não precisa ser máximo nem mínimo para garantir as liberdades individuais, como também para, por conseguinte, garantir as necessidades básicas como educação, saúde e saneamento, segurança e mobilidade.

Termino com a letra da tragicamente belíssima canção de Frejat: “Eu queria te abraçar e te proteger de todo o mal, reescrever a história e as notícias do jornal, fazer um photoshop na realidade, deletar toda miséria e a maldade. Se eu pudesse mudaria o mundo na televisão, com um toque no controle remoto aqui na minha mão. Tanta morte, tanto crime nesse mundo desigual, se eu pudesse acabaria com as guerras ao mudar de canal. Mas a verdade é que não há com fugir, temos que aprender a ser fortes meu amor, fortes, e a lidar com as coisas da vida e da morte.”*

 

* “Controle remoto”, de Roberto Frejat e Paulo Ricardo, lançada no disco Intimidade entre estranhos, em 2008, pela Warner Music Brasil.

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