Por Gabriela Bertti da Rocha Pinto

 

“E aí surge mais essa preocupação do ter ou não ter álcool em gel em casa. Mas como ter se não tinha dinheiro nem pra comprar água mineral?" Esse é o questionamento de uma moradora da favela de Acari, localizada na região norte do município do Rio de Janeiro frente à crise que se aproxima. A cidade ainda sofre com o problema da contaminação da água.

 

A maioria das casas em Acari não tem água o dia todo nas torneiras, há bombas nas ruas que são ligadas em determinados horários e há dias em que “a água está fraca e nem a bomba dá jeito”. E essa também é a realidade de outras favelas no Brasil, como a Providência, primeira favela do país, o morro do Alemão ambas no Rio de Janeiro e, Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo.

A principal recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde para que evitar a propagação do vírus é a higienização das mãos com água e sabão várias vezes ao dia e no caso dessa impossibilidade, a alternativa seria usar álcool em gel. Além de água imprópria para uso fornecida pelo Estado, muitas casas sequer têm acesso a ela. Mas a realidade sanitária nas favelas do Rio de Janeiro está muito distante do ideal para evitar a propagação do Covid-19.

O atual presidente do Brasil em uma de suas aparições na televisão, após questionado por um jornalista se ele não estaria preocupado como a pandemia atingiria a população, fez a seguinte fala “O brasileiro pula no esgoto e não acontece nada”. Notadamente descompromissado e desinformado do que acontece no país que governa, o presidente provavelmente desconhece que só em 2018, 2.208 pessoas moradoras da região metropolitana do Rio de Janeiro foram internadas por causa de doenças relacionadas ao saneamento básico, segundo dados do Data SUS analisados pela Casa Fluminense[1].

No Brasil, o saneamento básico é um direito assegurado pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei nº. 11.445/2007, que atribuem aos prefeitos a responsabilidade da titularidade, fiscalização e regulação dos serviços de saneamento básico nos municípios. O Instituto Trata Brasil[2], que analisa o saneamento básico nos municípios brasileiros há 13 anos, classificou com nota 6, de um máximo de 10, o município do Rio de Janeiro, sendo o 52º município de uma lista de cem. O cenário atual das favelas da cidade é de vulnerabilidade socioambiental, a falta planejamento eficiente e de políticas públicas impossibilita o acesso dessa população à direitos básicos como saneamento.

No dia 28 de março, o Jornal Estadão publicou que já havia 5 casos de contaminação pelo Covid 19 em favelas do Rio de Janeiro (2 em Manguinhos, 1 no Vidigal, 1 em Paradas de Lucas e 1 na Cidade de Deus). Na atualização no dia 06 de abril, o mesmo jornal divulga os primeiros 4 casos na Rocinha, e acrescenta outros casos nas comunidades (1 no Complexo do Alemão, 2 em Vigário Geral e 1 na Mangueira).

Quem são os vulnerados nesse contexto?

O conceito de vulnerabilidade advém da Bioética de Proteção, teoria com preocupação constante das relações humanas, que perpassa a história dos modos de convivência social, disponibilidade e oferta de recursos, que se manifesta claramente na cultura dos direitos humanos. Os vulnerados são sujeitos que não possuem algum amparo que venha do Estado ou da própria Sociedade, que não contam com a possibilidade de desenvolvimento pleno de suas capacidades por não possuírem o mínimo necessário para uma vida digna, como o saneamento básico por exemplo.

Nesse contexto, temos um cenário nada novo para o histórico da população periférica vulnerada, elas já resistem e sobrevivem às diversas epidemias e distintas doenças, como o caso da tuberculose que continua se alastrando. Para uns a morte já é certa e faz parte do cotidiano, seja pela fome, doença ou bala da polícia, que já fazem parte da rotina de territórios de favelas e periferias e se intensificam em momentos de crises econômicas.

A desigualdade social fica elucidada na estreita relação entre raça, renda e local de moradia. Esses vulnerados têm raça (preta) e classe social (pobre) bem definidas. Como podemos observar no mapa 1 referente ao município do Rio de Janeiro, feito pelo geógrafo Hugo Barbosa de Gusmão da Escola de Mapas e autor do blog Desigualdades Espaciais[3], é visível que os negros ficam concentrados a certos espaços enquanto os brancos ocupam o território de forma uniforme.

 

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Mapa 1: Localização das pessoas pretas na cidade do Rio de Janeiro segundo Censo 2010 do IBGE.

 

Os negros ocupam em sua maioria as áreas periféricas e de favelas, e mesmo nos bairros classificados como “ricos”, os negros estão restritos as áreas de vulnerabilidade, como podemos observar nos mapas abaixo que ilustram parte da zona sul do Rio de Janeiro, especificamente os bairros do Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon, Rocinha e Vidigal, referente as áreas de moradia pela raça e pela renda per capta.

 

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O papel do Estado

O racismo estrutural fica nítido diante dessas imagens, diante da crise sanitária, e agora diante de uma pandemia. A estrutura social é racista pois, conforme nos explica o pesquisador Silvio Almeida, em todos os espaços tem-se negros em condição subalternada, ora por violência estrutural (ausência de direitos), ora por violência cultural (suposta incapacidade ou incivilidade) e ora por força institucional (controle policial). Bom, não precisamos forçar muito a memória para elencarmos exemplos que ilustrem essas condições.

Diante desse cenário retomo o questionamento que intitula esse texto: quem está lavando as mãos?

Sendo um bem essencial à vida, à água, deve ser ofertada a cada pessoa indistintamente pelos gestores responsáveis. O que se observa, no entanto, é que a sua apropriação é feita de forma diferenciada de uma sociedade para outra, como também entre os membros de uma mesma sociedade, sem que seja acompanhado de razões morais, eticamente sustentáveis, para agir deste modo.

Colocar as desigualdades no centro da análise ética quando passamos a situações de assistência à saúde e decisões de saúde pública, implica em considerar as relações muito assimétricas, aqui pautadas por raça e classe, entre as populações de um município, o que significa uma obrigação moral de proteger a população mais vulnerada. Ou seja, é dever do Estado reconhecer as situações de desigualdades de acesso e desenvolver políticas públicas para a sua resolução, bem como promover ações afirmativas a fim de superar ou mitigar a discriminação racial.

 

[1] Formada em 2013 por ativistas, pesquisadores e cidadãos identificados com a visão de um Rio mais integrado, a Casa acredita que a realização deste horizonte passa pela afirmação de uma agenda pública aberta à participação de todos os fluminenses e destinada universalmente a todo o seu território e população e não apenas - ou prioritariamente - para as áreas centrais da capital

[2] O Instituto Trata Brasil é uma OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, formado por empresas com interesse nos avanços do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos do país.

[3] https://desigualdadesespaciais.wordpress.com/sobre 

https://www.youtube.com/channel/UC7wx9YxC8Dvx2_OfGkGOZeA/about

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