por Sergio Rego
A corporação médica brasileira sempre foi resistente à possibilidade de que médicos formados fora do país pudessem exercer livremente a profissão em nosso país. Ainda na primeira metade do século XIX a Academia Imperial de Medicina já discutia a proibição do exercício de profissionais formados alhures. A alegação de então era que as doenças existentes na França eram diferentes das existentes no Brasil. No século XX, passou-se a exigir a chamada revalidação do diploma daqueles graduados em outros países, questionando-se, muitas vezes corretamente, a qualidade do ensino médico oferecido em outros países. Entretanto, o que poderia ser um mecanismo legítimo de avaliação cedo mostrou-se como um mecanismo perverso para impedir a entrada regular desses médicos.
Por que perverso? Porque foi usado como estratégia, em muitas universidades, para não aprovar a maior parte dos concorrentes, exercendo assim uma barreira quase intransponível para a entrada desses profissionais no mercado brasileiro. Sempre houve um certo preconceito relativo aos profissionais formados fora do Brasil. Por exemplo, alguns recebiam a alcunha de peruvianos, por serem graduados no Peru ou na Bolívia. De uma maneira geral, os centros que aplicavam o exame estabeleciam um nível de complexidade tão alto para os “estrangeiros” que uma boa parte dos graduados em escolas em nosso próprio país não lograria ser aprovada tampouco.
A polêmica em relação ao Programa Mais Médicos e à participação de médicos formados no exterior deve ser avaliada dentro deste contexto, mas procurando compreender que o Programa não pretendia recrutar profissionais que quisessem se estabelecer definitivamente no país. O Programa Mais Médicos foi uma estratégia emergencial para oferecer cuidado à saúde para a população brasileira em localidades nas quais os médicos brasileiros não tinham e não têm interesse ou desejo de atuar. São localidades que possuem enorme contingente populacional sendo atendido de forma precária pelo Estado brasileiro. O Programa devia ser visto como uma ação humanitária para a qual critérios excepcionais foram adotados e que viabilizou uma incorporação massiva de profissionais nestas regiões desassistidas.
A crítica ideológica contra os médicos formados em Cuba deveria ser ignorada por sua inconsistência. Não há dúvida real de que eles sejam médicos, nem que a vinda para a missão no exterior não tenha sido voluntária, nem sobre a seriedade e o rigor de sua formação, embora menos dependente do uso de tecnologias de última geração. Tampouco eles ocuparam lugares de médicos graduados no Brasil, já que estes sempre tiveram a prioridade para a contratação. A exigência para que esses profissionais se submetessem ao processo de Revalidação do diploma antes de iniciarem sua atuação em solo brasileiro seria adiar o início de uma ação humanitária necessária. É claro que os profissionais que desejem atuar fora dos limites estratégicos do Programa Mais Médicos devem se submeter ao processo regular de revalidação. O exame do “Revalida” realizado pelo Ministério da Saúde, tem um perfil bastante diferente daquele que é feito sob os auspícios de algumas Universidades. Trata-se de um processo de avaliação que supera a ideia de avaliar a memorização pura e simples. Mas o processo é dispendioso e está incompreensivelmente lento. Para se ter uma ideia todos aqueles que fizeram a primeira fase do “Revalida” no segundo semestre do ano passado só realizarão a segunda fase um ano depois, neste mês de novembro. Isso inviabiliza qualquer política séria de avaliação desses contingentes.
Mas é preciso avançar mais nessa discussão. Os exames que o Cremesp tem realizado desde 2005 para avaliar o conhecimento médico dos recém-formados, e que de início eram voluntários, serão obrigatórios a partir deste ano. Segundo dados do Cremesp nos últimos sete anos apenas 46,7% dos que se submeteram ao exame foram aprovados, o que é bastante preocupante. A proliferação de escolas médicas, criadas ao sabor dos estímulos dados desde a década de noventa passada torna imperativo o debate sobre a obrigatoriedade de se adotar um processo de avaliação nacional para todos os graduados no país. O ideal é que este exame seja prestado antes da graduação final dos estudantes, já que uma reprovação não deveria ser vista como uma reprovação individual, mas da escola que não logrou formar o aluno de forma apropriada. O exame que o Cremesp oferece é conhecido também como “Exame de Ordem”, em uma analogia com o exame oferecido pela Ordem dos Advogados após a graduação dos pretendentes ao exercício da advocacia.
O problema da distribuição irregular de médicos, mas não só de médicos, pelo país, tem especial relevância nas regiões menos desenvolvidas do país. Uma proposta que vem sendo discutida ao menos desde a 8ª Conferência Nacional de Saúde – o serviço civil obrigatório – deveria ser novamente discutida em nosso país. Estabelecer o serviço civil obrigatório com mecanismos de apoio, centros regionalizados de especialidades e exames complementares de referência, com recursos da telemedicina pode ser um caminho para equacionarmos, ainda que emergencialmente também, a má-distribuição de médicos no Brasil.
Sergio Rego – Médico, pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca/Fiocruz. Pesquisador do CNPq e professor do PPGBIOS.
Sexta, 16/11/2018 - Publicado em Luis Nassif Online - Jornal GGN. Foto Araquém Alcântara