Por Mauricio Metri e Eduardo Crespo[1]

O governo brasileiro publicou hoje, dia 23 de março de 2020, a MP 927, que dispõe sobre “medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública (…) e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.” Por mais que tenha recuado em relação ao Artigo 18, que permitia o empregador cortar ou suspender o pagamento de salários por quatro meses, a lógica da MP segue sendo irresponsável, sem paralelo em outros países.

 

O governo federal busca criar um novo marco legal para precarizar ainda mais as relações de trabalho, flexibilizando a ação dos agentes de mercado para encontrarem novos marcos contratuais. Por um lado, como as novas regras da MP 927 não se baseiam na defesa do trabalhador (ao contrário) e, por outro, como as negociações não dependerão de convenção coletiva, sendo individuais, os acordos acabarão por: (i) refletir os interesses do empregador, dada a diferença de poder de negociação entre as partes; (ii) ampliar a vulnerabilidade dos trabalhadores diante da conjuntura de grave crise epidêmica e econômica; e (iii) comprometer a estratégia de isolamento social, pois, além de reforçar a vulnerabilidade sócio-econômico de grande parte dos trabalhadores, já num quadro epidêmico grave e de considerável exclusão social, tais regras contribuirão para a aceleração da recessão econômica em andamento, como também de seus efeitos negativos sobre atividades produtivas, potencializando os riscos de desabastecimento, desestruturação econômica e outros efeitos daí decorrentes.

Apesar de haver no mundo um consenso de que a linha estratégica de enfrentamento à epidemia é o isolamento social, tornando necessárias ações econômicas urgentes que viabilizem tanto as condições econômicas concretas e materiais para que as pessoas possam permanecer em casa isoladas, quanto o fortalecimento do sistema nacional de saúde para enfrentamento da epidemia, o governo federal atua de forma a minar as possibilidade de esta estratégia ser bem sucedida no Brasil, a partir de iniciativas que reforçam ainda mais a própria crise econômica, aumentam a precariedade da população em geral e reduzem a renda familiar. Sem criar condições mínimas para garantir a subsistência material da população é impossível garantir o isolamento sem que haja fome, convulsão social ou uma combinação de ambos.

Isto porque, diante da privação alimentar e dos demais recursos necessários à vida, reforçada pela MP 927, a tendência é a generalização dos saques aos mercados e da violência urbana em geral. Ou seja, do isolamento caminha-se para o caos sob patrocínio do governo federal. Com efeito, o controle epidêmico será́ nulo e seus efeitos sobre a vida de muitos brasileiros potencializados. Olhando para os dados de outros países em estágio avançado da epidemia, referimo-nos ao falecimento por negligência de dezenas de milhares de brasileiros. Não há margem para erros nem atrasos.

Nesse momento, o governo federal precisa agir urgentemente em outra direção. Deve simplesmente gastar, via expansão monetária e/ou colocação de dívida, em saúde e todas as demais áreas estratégicas, além de realizar transferências unilaterais (de renda, bens e serviços) à população mais vulnerável, trabalhadores, desempregados, autônomos, profissionais liberais, etc. Do ponto de vista financeiro, trata-se de uma operação simples entre Tesouro Nacional e Banco Central, que não passa pelo setor privado. Para isso, não é preciso aumentar nenhuma receita tributária sobre nenhum setor ou grupo. Tampouco se faz necessária uma moratória da dívida publica como alguns sugerem. Não se trata também de retirar recursos de uma rubrica para colocar em outra. Trata-se apenas de gastar, desconsiderando qualquer meta de déficit, e administrar uma economia em tempos de guerra, no caso, contra o COVID-19.

Depois de decretado e autorizado pelo Congresso o estado de calamidade, houve a flexibilização das regras fiscais e o governo federal pode gastar sem contrapartidas tributarias. Portanto, não há efetivamente nenhuma restrição real, tampouco legal, à ação estratégica do governo federal necessária ao enfrentamento da crise epidêmica, econômica e social. Infelizmente há uma certa dificuldade, inclusive dos meios de comunicação em geral, de entender que o estado não funciona como uma economia do lar.

Os eventuais desajustes macroeconômicos futuros (sobretudo os relacionados à expansão do déficit fiscal) decorrentes da política econômica de esforço de guerra é uma discussão para ser feita depois da própria crise epidêmica. O que está em questão agora é a vida de muitos brasileiros e a preservação da sociedade enquanto tal. Até mesmo politicamente não convém discutir, neste momento, sobre quem recairá o ônus dos ajustes futuros, pois criam-se impasses políticos que imobilizam as ações urgentes. A prioridade zero é expandir a demanda agregada por transferências unilaterais à população em geral (sobretudo àquela em situação de maior vulnerabilidade) e os gastos sobretudo na área de saúde (mas não apenas), conforme discutido em outra oportunidade.[2]

A única restrição real a ação do estado que poderia existir é a capacidade de importação. Mas, no que se refere ao Brasil, ocorreu num período recente um acúmulo extraordinário de reservas internacionais no Banco Central, que precisam ser usadas estrategicamente. Não para financiar déficit fiscal, mas, como dito, para preservar a capacidade de importação. Conforme advertiu o próprio FMI, é preciso tomar cuidados contra movimentos de capitais que desestabilizem as economias nacionais e seus esforços para enfrentamento da epidemia do COVID-19.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu, dentre outras organizações econômicas internacionais, já́ se manifestaram a favor de ações governamentais em defesa de suas respectivas populações e de seus sistemas nacionais de saúde, por meio de políticas fiscal e monetária expansionistas. Algo que efetivamente vem sendo implementado por diversos países de todo mundo, ou seja, em sentido oposto ao que está em proposição na MP 927.

 

[1] Professores do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ e Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (PEPI-IE) da UFRJ.

[2] https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/economia-em-tempos-de-covid-19-reflexoes-para-enfrentamento-por- mauricio-metri-e-eduardo-crespo/

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