*Fortes, Schramm, Rego, Brito e Narciso, 2020.
Dentre as muitas questões éticas surgidas com a pandemia Covid-19, uma, em particular, guarda direta relação com o tema da justiça social enquanto foco investigativo do próprio nexo entre moral e política. Trata-se de sabermos em que medida cabe à sociedade o dever de assegurar aos seus membros uma renda básica, capaz de lhes garantir assim um item elementar de sobrevivência em contraponto aos abusos do poder econômico. Em tais circunstâncias, o debate costuma girar em torno do papel redistributivo do Estado, cuja força reivindicativa coincide normativamente com o pressuposto de um pacto de solidariedade celebrado entre os cidadãos.
Do ponto de vista das democracias constitucionais modernas, o argumento mais coerente em defesa do direito à renda básica decorre precisamente desse axioma fundamental da legitimidade do Estado. Neste caso, o direito à renda deve ser interpretado não como um privilégio de quem ainda precisa “provar seu mérito”, mas como um compromisso incondicional de toda sociedade com a subsistência de cada um dos seus membros, entendidos como cidadãos vinculados a uma única comunidade de direitos e deveresrecíprocos. Na interpretação consagrada de John Rawls, por exemplo, o direito à renda chega a ser classificado como um "bem social primário", isto é, como um requisito indispensável à qualificação política dos indivíduos como plenos beneficiários da cooperação social e, por dedução, como agentes moralmente integrados a um mesmo esquema público de encargos e vantagens.
Em consonância com essa formulação filosófica, muitas outras ideias podem ser garimpadas como argumentos complementares em defesa do direito à renda básica. Via de regra, são ideias que reforçam a correlação entre a condição de vulnerabilidade econômica e a experiência de uma cidadania humilhada, fonte permanente de incertezas e com enorme impacto negativo para a autoestima dos indivíduos. Não por acaso, destacam-se aqui os argumentos que reconhecem a vital importância para a sociedade de muitas atividades não remuneradas pelo mercado formal de trabalho ou que guardam a marca histórica do racismo estrutural, como é o caso de muitas tarefas domésticas e trabalhos manuais que, para a ampla maioria da população – especialmente mulheres negras, representam uma evidente desvantagem em relação justamente àqueles que acabam utilizando os seus serviços.
Convém lembrarmos, contudo, que o Brasil já dispõe, em estreita sintonia com a Constituição Federal, de um mecanismo legal voltado para a implementação do direito à renda básica. Sancionada em janeiro de 2004 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 10.835 estabelece, logo no seu Art. 1º, o direito a um benefício monetário anual para “todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica (...)”. Embora sujeita a uma série de critérios administrativos (implementação gradativa, ordem de prioridade, base orçamentária etc.), a proposta é taxativa ao afirmar, ainda no Art.1º (§ 2º), que o pagamento do benefício deverá ser “suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde (...)”.
Em que pese a imensa importância dessa conquista legislativa, sabemos, porém, que ela não se transformou em realidade. Mesmo reconhecendo inúmeros avanços sociais ao longo dos governos Lula e Dilma, devemos reconhecer também que a pauta da renda básica como um direito de cidadania não chegou a ultrapassar a barreira dos interesses oligárquicos que colonizam, desde os tempos imperiais, a nossa agenda política. Nesse sentido, parece lícito inferirmos que a proteção dos segmentos mais vulneráveis da população permaneceu ainda refém de um quadro relativamente fragmentado de normas infraconstitucionais, sujeito portanto a frequentes revisões em virtude da primazia de um regime fiscal e tributário adotado preferencialmente em benefício da cultura rentista e em detrimento de uma visão mais orgânica dos laços de civilidade. Somente agora, em plena pandemia do novo coronavírus, a pauta volta a aparecer como possibilidade. Mas terá ela a força necessária para superar a histórica inércia das nossas elites políticas e econômicas?
A crescente crise humanitária imposta pela pandemia já ameaça as grandes potências econômicas e coloca em xeque algumas das certezas neoliberais da moral individualista e baseada na meritocracia. Mais da metade da população na América Latina vive sem qualquer proteção social.1 A crise social e econômica da Covid-19 impactará de maneira desproporcional essa população já historicamente desprotegida.
Não resta dúvida que o mais recente esforço contra tal iniquidade pode ser timidamente entrevisto na publicação da Lei 13.982, de 02 de abril de 2020, cujo conteúdo prevê o pagamento, por três meses consecutivos, de um auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) aos trabalhadores maiores de 18 (dezoito) anos de idade e, dentre outros requisitos, sem emprego formal ativo (disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Lei/L13982.htm). Todavia, a ideia mesma de uma cobertura temporal pré-definida para o benefício parece autorizar a hipótese de que muitos outros esforços serão ainda necessários a fim de garantir a segurança financeira desses indivíduos. Além disso, este auxílio emergencial deveria incluir todos os vulnerados (como as pessoas em situação de rua e outros que, quase sempre, não possuem documentos de identidade e outros recursos), o que demandaria igualmente soluções e abordagens não-burocráticas. Sob este aspecto, cabe não esquecermos que as consequências mais dramáticas da pandemia são também de longo prazo, restando pouca incerteza quanto às implicações de uma já esperada recessão econômica para a vida de milhões de pessoas.
À guisa de conclusão, talvez seja oportuno acrescentarmos um último ingrediente crítico para a nossa reflexão. Trata-se de uma legítima preocupação sobre os rumos desse debate perante um governo ideologicamente alinhado com os interesses do poder econômico, com inequívocas sinalizações de que o favorecimento do rentismo continuará sendo a tônica de suas escolhas políticas. Assim, a pergunta que se pode fazer ainda é: as políticas neoliberais serão capazes de responder às necessidades da população mais carente? Em 2017 o Brasil já era o sétimo país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas de países africanos. Cada vez que ouvimos os atuais mandarins econômicos, lembramo-nos do cinismo que já era percebido no discurso do milagreiro ministro Delfim Netto, que justificava a concentração de renda dizendo ser necessário "primeiro aumentar o bolo para depois dividir". Pergunta-se, assim, novamente: haverá esperança de que as políticas neoliberais poderão beneficiar os que mais precisam? Neste particular, é justo considerarmos que apenas com base em uma ampla coalizão de forças, sensíveis ao apelo democrático e responsivo da proposta, poderemos ajudar a recolocá-la definitivamente em pauta. Como afirmou recentemente o ex-senador Eduardo Suplicy (PT), um dos mais entusiastas defensores do direito à renda básica e autor da Lei 10.835, a hora é, mais do que nunca, necessária.
Notas:
1 OIT. Presente y futuro de la protección social en América Latina y Caribe. 2018 https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---americas/---rolima/documents/publication/wcms_633654.pdf
Autores:
Pablo Dias Fortes – Ensp/Fiocruz, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco. Contato: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.
Fermin Roland Schramm – Ensp/Fiocruz - PPGBIOS
Sergio Rego – Ensp/Fiocruz – PPGBIOS - PQ CNPq – GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa
Luciana Brito – ANIS – Instituto de Bioética - GT Bioética Abrasco - Unit RJ/Unesco Chair Haifa
Luciana Narciso – Ensp/Fiocruz/PPGBIOS – GT Bioética Abrasco - Unit RJ/Unesco Chair Haifa
• Todos os autores participam do Observatório Covid-19, GT de Bioética, organizado na Fundação Oswaldo Cruz.
• Participam do GT de Bioética do Observatório Covid-19 docentes da: Ensp/Fiocruz, Nubea/Ufrj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Viçosa, GT Bioética da Abrasco e a Rio de Janeiro Unit of the International Network of the Unesco Chair in Bioethics at Haifa, Universidade Federal de Viçosa, Unifesp.
• Contribuições: Pablo Dias Fortes escreveu a primeira versão do texto, que foi debatido com os demais autores e escrito sucessivas versões até chegarmos à versão final.