(Schramm, Borges, Fortes, Gomes, Marinho, Narciso, Palácios, Rego, Santos, Siqueira-Batista, Thomé, 2020)

A pandemia do novocoronavírus pode ser vistacomo uma situação trágicase considerarmos que “tendemos a recusar fatos negativos e repugnantes, cujo impacto sobre nós é tão perturbador que nos leva a negar a realidade”1.Pode ser vista também como um dilema no qual a humanidade teria que enfrentar a alternativa entre escolher a vida e suas qualidades ou a economia e a produção, o que constitui, aparentemente, uma escolha impossível pois a qualidade de vida implica sua sustentabilidade pela produção de bens e serviços e a produção precisa de consumidores de tais bens. Por isso, a solução atualmente vigente consiste em salvar vidas e sustentar os serviços sanitários graças ao confinamento geral da população ou, pelo menos,das populações consideradas mais vulneráveis.

 

De fato, a maioria dos Estados tem eadotado a estratégia do confinamento (que pode ser vista como um “remédio”) -cujo lema difuso é “fiquem em casa”-, pois esta escolhaparece funcionar, sendo que a maioria dos profissionais de saúde (como os médicos) parece defender sua prorrogação atéque o número de casos não ultrapasse a capacidade de oferta de cuidado dos sistemas de saúde.Entretanto, a produção de bens dos Estadosenvolvidos pareceestar minguando, o desemprego aumentando e os salários diminuindo. Com efeito, parece que a escolha tem sidooptar, por enquanto, e prioritariamente,pelasaúde pública, deixando a economia na expectativa. Escolha compartilhada até por alguns bancos, como é o caso do Crédit Suisse, cujo presidente no Brasil afirmou em 4/4/2020 que “pagar a conta da pandemia fica paradepois” e que “o grande objetivo” dos governos deve ser “garantir que a população mais vulnerável atravesse a crise”, sendo que o debate entre salvar vidas ou a economia “é um falso dilema”, visto que o Estado deve se endividar e prover recursos para “aqueles que mais precisam”, sabendo que permitir a infecção “em massa pode desorganizar completamente a economia e o sistema público de saúde”.2

Mas, de acordo com o debate virtual “E agora, Brasil?”, frente a um cenário adverso de recessão profunda e duradouraé “preciso fugir à tentação de transformar em permanentes os gastos emergenciais que a pandemia exige, mas superando as deficiências em matéria de saúde, saneamento e inclusão que ela escancara”, sendo que tal desafio extrapolaria “os limites da economia, exigindo transformações no próprio tecido social: empresas mais solidárias; uma classe política mais madura e aberta ao diálogo; um país menos desigual”, pois a pandemia “ressalta mazelas de um país desigual, com saneamento escasso e informalidade que abarca 40% dos trabalhadores, dificultando a implementação de medidas de socorro”, devendo-se destacar a necessidade de “muito diálogo e solidariedade”.3

De fato, pode-se razoavelmente sustentar que, no campo da saúde, há sempre mais necessidades que recursos, sendo que, por isso, muitos pacientes não recebem todos os cuidados de que precisam. Este é o caso, por exemplo,das UTIs, nas quais os profissionais responsáveis devem fazer escolhasem situações nas quaiso conjunto das pessoas que precisamde terapia intensiva é maior que o de vagas disponíveis;ou seja, em que a escassez afeta esses julgamentos, fazendo com que a insuficiência de vagas torneos critérios de admissão mais rigorosos, sobretudo quando o que pode ser oferecido a cada um é condicionado pelo necessário para salvar o maior número de vidas. Por issoexistem normas para ter acesso à UTI que em princípio devem evitar aalocação de leitos baseada apenas em ordem de chegada ou urgência, quenem sempre são os critérios mais corretos para orientar as decisões, evitando também o favorecimento a pessoas de determinada classe social ou grupoétnico-racial.

Com efeito, de acordo coma Resolução 2156/16 do CFM, que “estabelece os critérios de admissão e alta em unidades de terapia intensiva”, o critério para distribuir vagas é a “necessidade de suporte para as disfunções orgânicas e monitoração intensiva”4,levando em conta a necessidade de intervir no suporte à vidaea probabilidade de recuperação quando não houver limitações no suporte terapêutico, mas limitando ou suspendendo procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente incurável e em fase terminal.Ademais, em situações consideradas de “desastre”, a orientação é que se devepreferir aqueles pacientes para os quais “se prevê uma alta mais rápida”, o queem princípio “permite maior rotatividade na UTI e, consequentemente aumenta o número de pessoasque podem se beneficiar”5,o que não impede que, na prática, a decisão esteja, muitas vezes, influenciada por valores pessoais do agente, que podem ser vistos como não sendo republicanos.

Entretanto, devemos distinguir entre “negar acesso a um recurso devido à escassez” e “abandonar o cidadão”, sendo que “as atenções primária e secundária também precisam ser capazes de cuidar daqueles em situação menos grave para que não venham a necessitar de UTI, sem esquecer as medidas de prevenção”, que constituem “a melhor resposta para a pandemia.”6

De fato, pode-sedizer queo problema entre salvar vidas ou a economiaéum falso dilema, pois o isolamento das populações pode ser visto, sobretudo, como “um ato de responsabilidade”.7Também para o FMI e a OMS o suposto dilema entre salvar vidas e salvar empregos é falso e deve-se dar apoio financeiro prioritariamente aos mais necessitados. Podendo-se acrescentar a instauração de uma renda básica universal e de um imposto progressivo.

O país que parece enxergara pandemia não como dilema é a China, pois, apesar de suaatualdesaceleração econômica,as autoridades chinesas pretendem segurar a economia enquanto houver risco considerável à saúde pública, sendo que “os empregos perdidos serão recuperados mais à frente”; em suma, “a escolha da China é simples: saúde acima de tudo, porque um dos valores mais caros ao Partido Comunista é a ordem social”, sendo que “o papel do governo é proteger a vida das pessoas”.8

Voltando ao Brasil, para olíder indígena Ailton Krenak9, que considera que as autoridades que insistem que devemos retomar a rotina econômica em meio da pandemia a partir do pressuposto de que “a economia não pode parar”, para podermos, depois, voltar a uma suposta “normalidade”, erram, pois “voltar ao normal seria como se converter ao negacionismo e aceitar que a Terra é plana. Que devemos seguir nos devorando”,podendo-se concluir que somente “governos burros acham que a economia não pode parar”. Perguntado sobre a mobilização social para ajudar populações vulneráveis,afirma que “devemos expandir o sentido de solidariedade” e “abandonar o antropocentrismo”, sendo que “o contágio pode se espalhar de forma muito mais fácil numa aldeia.”

Devemos também lembrar, como exemplo da precariedade vivenciada por parte da população, osmoradores de favelas, cujas casas,não raro,têm muita gente, são pouco ventiladase“quando tem luz, não tem água; quando tem água, não tem luz.” Nestas condições, o morador doente “não tem a opção de se isolar” e o risco de infectar a família é grande. Além disso, ele tem que trabalhar. Mas não devemos tampouco esquecer que os moradores da favela se deslocam para “dar expediente como porteiro, empregada doméstica, atendente de farmácia, caixa de supermercado”.Entretanto, apesar desses serviços prestados, tal cidadão “não recebe os cuidados que merece”, pois “a reivindicação por saneamento básico na Rocinha é feita há mais de 50 anos”. Assim sendo, pergunta a autorada entrevista, “dá para convencer uma pessoa a ficar dentro de casa sem água, semluz, sem comida, sem trabalho? Como conscientizar essa gente?” E conclui “fica um discurso vazio”, pois “o governo sabe subir a favela para levar caveirões, mas seesquece da água e do esgoto.”10

Finalizando, fala-se muito que a COVID-19 estaria transformando o mundo, fortalecendo a solidariedade entre pessoas e organizações, mas, pelo menos no Brasil, os sinais mais fortes ainda são os do descaso com as populações vulneradas, que são as que tem menos condições de se proteger. Atuar prioritariamente na proteção dos mais desamparados poderia ser uma esperança de mudança parao nossopaís.

Autores:

Fermin Roland Schramm –Ensp/Fiocruz, PPGBIOS. Contato: O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

Borges -UnB, IPPFPablo Fortes -Ensp/Fiocruz, PPGBIOS,GT Bioética Abrasco

Andreia Gomes -UFViçosa, PPGBIOSSuely Marinho -HUCFF/UFRJ

Luciana Narciso -Nubea/UFRJ e Ensp/Fiocruz/PPGBIOS–GT Bioética Abrasco-Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Marisa Palácios -Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco -Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Sergio Rego -Ensp/Fiocruz –PPGBIOS -PQ CNPq –GT Bioética Abrasco -Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at HaifaSonia Santos, Faculdade de Educação /UERJ-PPGBIOS

Rodrigo Siqueira-Batista, UFViçosa, PPGBIOS, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at HaifaBeatriz Thomé, UNIFESP

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Contribuições:

Fermin Roland Schramm escreveu a primeira versão do texto, que foi debatido com os demais autores e escrito sucessivas versões até chegarmos à versão final.

•Todos os autores participam do Observatório Covid-19, GT de Bioética, organizado na Fundação Oswaldo Cruz.

•Participam do GT de Bioética do Observatório Covid-19 docentes da: Ensp/Fiocruz, Nubea/Ufrj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de São Paulo.Docentes do Programa de Pós-graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS), do GT Bioética da Abrasco e da Rio de Janeiro Unit of the International Network of the Unesco Chair in Bioethics at Haifa

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Notas:

1- Mori, M. Manzoni, la negazione della realtà (della peste), e l’analogo atteggiamento circa le Raccomandazioni Siiarti sull’emergenza Coronavirus, 26/03/2012. http://www.quotidianosanita.it/studi-e-analisi/articolo.php?articolo_id=83114.

2- Barbosa,M. ‘Pagar a conta da pandemia fica para depois’. Entrevista José Olympio Pereira, Presidente do banco Crédit Suisse, O Globo, 4/4/2020. https://oglobo.globo.com/economia/pagar-conta-da-pandemia-fica-para-depois-diz-presidente-do-credit-suisse-24343046.

3- Setti, R; Cavalcanti, R; Soares, L. “’E agora, Brasil?’: Futuro pós-crise vai além dos desafios econômicos e exige mais diálogo e solidariedade. O Globo, 09/04/2020.https://oglobo.globo.com/economia/e-agora-brasil-futuro-pos-crise-vai-alem-dos-desafios-economicos-exige-mais-dialogo-solidariedade-1-24360797

4- https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2156

5-Wang, DWL & Lucca-Silveira M. Escolhas dramáticas em contextos trágicos. Folha de S. Paulo, 5/4/2010, p. B14.https://ieps.org.br/wp-content/uploads/2020/03/NT5-IEPS.pdf.6Ibidem.

7- Amir Klink in Niklas, J. Juntos no barco Terra, O Globo. Segundo em quarentena, 7.4.2020, p. 1.https://oglobo.globo.com/cultura/amyr-klink-sobre-coronavirus-estamos-num-barco-chamado-terra-se-tem-algum-furo-todos-tem-que-investigar-24354621.

8- Ninio Marcelo. Depois do pior da epidemia, China vive ‘novo normal’ e teme surto importado. https://oglobo.globo.com/mundo/depois-do-pior-da-epidemia-china-vive-novo-normal-teme-surto-importado-24350089.

9- Helal, WF. Entrevista a Ailton Krenak, O Globo. Segundo em quarentena, 6/4/2020, p. 1) https://www.geledes.org.br/voltar-ao-normal-seria-como-se-converter-a-negacionismo-e-aceitar-que-a-terra-e-plana-diz-ailton-krenak/.

10- Silva M.A favela é o motor da cidade, mas não recebe os cuidados que merece. O Globo, 7/4/2020, p. 18)https://oglobo.globo.com/rio/com-casos-crescentes-de-coronavirus-comunidades-relatam-tamanho-do-desafio-1-24355769

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