por Simone Silva

Artigo Si Blog Junho

Em outubro de 2015 escrevi sobre a possibilidade de estarmos diante de um novo padrão de pesquisa criado por um novo padrão de financiamento. Naquele texto[i], demonstrava que o modelo de financiamento público destinado à produção científica no Brasil vem sofrendo mudanças importantes que poderiam determinar uma alteração estrutural e ameaçadora aos programas de pós-graduação das universidades públicas. Somados às alterações no modelo de financiamento, os cortes, em um orçamento que já não supria as necessidades dos programas de pós-graduação, exacerbam as dificuldades que os pesquisadores enfrentam para realizar a pesquisa.

 

Vale sempre lembrar que a universidade é, no Brasil, a base da pesquisa acadêmica, científica e tecnológica. Nela se realiza quase a totalidade das atividades de pesquisa do país. Distintamente de outros países, a burguesia brasileira ligada ao setor produtivo não investiu na construção de grandes centros de pesquisas. Por sua vez, o governo da ditadura civil-militar incluiu a Ciência e Tecnologia (C&T) em seus investimentos no período do “milagre brasileiro”, o que expandiu e consolidou a pós-graduação, mas não fora da dicotomia entre a autonomia necessária à pesquisa e as perspectivas do regime militar.

Os atuais e sucessivos cortes no orçamento público para a pós-graduação têm levado a que os pesquisadores busquem alternativas de financiamento, que vão desde contratos entre as universidades e empresas para pesquisa de produção, desenvolvimento e inovação (PD&I) até a prestação de serviços como consultorias, elaboração de pareceres técnicos, confecção de laudos, treinamento etc. Todas essas variantes são consideradas pela comunidade acadêmica, grosso modo, como inovação, o nome utilizado para denominar a grande saída para todos os problemas de desenvolvimento do país.

Pode-se considerar que as políticas que contribuem para esse novo padrão de pesquisa vêm sendo estabelecidas desde a crise econômica da década de 1980 e surgem com um viés neoliberal como saída para a crise do capital. Para a pesquisa, a redução dos patamares de financiamento se traduziu no aumento da participação decisória do Banco Mundial através de editais e da vinculação do financiamento ao acordo da dívida externa. Também é neste período que a distribuição de recursos é vinculada a processos de avaliação por pares que nunca antes foram avaliados. Essa medida criou uma hierarquia meritocrática vigente até os dias atuais.

Seguindo a via neoliberal, o Estado adquire uma nova dimensão capaz de arbitrar a entrada do setor privado nas políticas sociais. A reforma do Estado (1994) reconhece quatro setores dentro dele: o núcleo estratégico do Estado, as atividades exclusivas do Estado, os serviços não exclusivos ou competitivos e a produção de bens e serviços para o mercado. Considera ainda que as universidades, as escolas técnicas, os centros de pesquisa, os hospitais e museus são relevantes, embora não se incluam nas atividades exclusivas do Estado. Portanto, para estes setores, a política é transformá-los voluntariamente em um tipo especial de entidade não-estatal – as organizações sociais, que podem celebrar contratos de gestão com o Poder Executivo e são autorizadas a participar do orçamento público.[ii] Por meio de um novo conceito, procurou-se instituir algo novo, não público, mas participante do orçamento público.

A lei das fundações (1994) e a criação dos fundos setoriais (1999) já apontavam um novo formato para o financiamento da pesquisa. Mas é no novo século, com a ascensão do governo do Partido dos Trabalhadores e a opção pela composição de um bloco com importantes setores do capital em nome de um novo desenvolvimento do país, que a aproximação entre universidade e empresa adquire políticas e legislação mais contundentes.

A Lei de Inovação Tecnológica (10.973/04) poderia ser considerada, até a aprovação do novo marco de C&T, o passo mais ousado na criação do novo padrão de pesquisa e financiamento. No entanto, o estímulo desta lei à inovação, complementado pela Lei do Bem (11.196/2005), que instituiu o regime especial de tributação para a exportação e criou concessão de incentivos fiscais à pesquisa e à inovação, ainda era insuficiente.

Em 2013, foi criada a Empresa Brasileira de Inovação Industrial – Embrapii (2013)[iii], uma organização social que tem contrato de gestão com o Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação – MCTI e o Ministério da Educação – MEC. Os dois ministérios repartem igualmente a responsabilidade pelo seu financiamento. A atribuição desta empresa é atuar por meio de cooperação com instituições de C&T públicas ou privadas, para atender as demandas empresarias e compartilhar com elas o risco na fase pré-competitiva da inovação.

Considerando que a maior parte das pesquisas no Brasil é realizada nos programas de pós-graduação das universidades públicas, essa configuração já indicaria um futuro trágico. Mas, o pior ainda estava por vir. Era preciso adequar a universidade pública para que a inovação, ou melhor, a aproximação entre a universidade e a empresa pudesse ser simplificada e estimulada.

O novo marco de C&T tem como principal incumbência a simplificação da integração público-privada. Tramitando desde 2011 como projeto de lei 2.177, em 2013 se transforma em projeto de emenda constitucional. Além de emendar a Constituição Federal, a lei 13.243/2016 altera outras dez leis. Algumas que versam sobre contratação, licitação e importação (Lei de Licitações e Contratos da Administração Pública, 8.666/93; a Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas, RDC 12.462/11; a Lei das Importações de Bens Para a Pesquisa Científica, 8.010/90; a Lei de Isenções ou Redução de Impostos de Importação, 8032/90). Outras que atingem diretamente as instituições públicas de ensino (Lei de Inovação, 10.973/04; Lei da Contratação Temporária no Serviço Público, 8.745/93; Leis das Relações entre as Universidades, 8.958/94; Plano de Carreira das Universidades, 12.772/12; Lei dos Institutos Federais, 11.892/08. E ainda o Estatuto do Estrangeiro.

Aprovado por unamidade no Senado o novo marco de C&T contou com um parecer entusiasta do Senador Cristovam Buarque. No momento da sanção pela presidenta Dilma Rousseff, recebeu apenas dois vetos: o que isentava o recolhimento de impostos previdenciários sobre bolsas e o que dispensava empresas com faturamento de até R$ 90 milhões de licitações. A presidenta considerou, segundo declaração ao Jornal O Globo[iv], que a aprovação da lei vai acelerar o desenvolvimento do Brasil.

A preocupação em tornar célere o desenvolvimento do país, neste caso, passa por estimular a universidade a abrir suas portas para as empresas. Com a aprovação da lei, à empresa será permitido utilizar espaços, equipamentos e servidores de instituições públicas; o estabelecimento de contratos entre as instituições públicas e as empresas será simplificado, assim como o processo licitatório. A lei também autoriza o recebimento direto de recursos das agências federais de fomento (Capes, CNPq e Finep) pelas fundações de apoio. Ainda promove a integração de empresas privadas ao Sistema Nacional Público de Pesquisa, permitindo o acesso a recursos públicos por parte destas instituições.

Para permitir agilidade na integração, as fundações de apoio passam a poder assumir a administração financeira desses contratos, apesar das recentes investigações e escândalos envolvendo-as. Há menos de um ano atrás, o jornal Estado de São Paulo denunciava que “negócios privados, contratos obscuros e intermediações feitas por fundações envolvidas em irregularidades ganhavam cada vez mais espaço nas universidades públicas do Brasil.”[v]

Somado a este quadro, os seguidos e crescentes cortes orçamentários na verba de sustentação da pós-graduação agravam seriamente a realização da pesquisa, fato reconhecido tanto pelo parlamento, na CCT do Senado[vi],, quanto na sociedade acadêmica. Helena Nader, presidente da SBPC, identifica o cenário como o pior dos últimos 20 anos[vii]. No entanto, a Finep, logo após a sanção pela presidenta do novo marco de C&T, libera financiamento para as universidades. Ao todo, 31 instituições de ensino e pesquisa vão receber R$ 37,8 milhões do CT-Infra para projetos de implantação e ampliação de infraestrutura. A Finep também vai repassar recursos para conclusão de obras selecionadas em editais lançados entre 2004 e 2013.[viii] Valores represados por cerca de três anos para infraestrutura são liberados assim que entra em vigor a lei que autoriza o uso dos laboratórios das instituições públicas.

A lei também interfere nas relações de trabalho nas instituições públicas. Autoriza o afastamento do servidor de suas atividades para colaborar com outras instituições de pesquisa públicas ou privadas, sem ônus para ele e com a permissão para que receba remuneração adicional. Altera o tempo de contratação temporária e cria uma nova modalidade de bolsa (suporte à inovação) para o corpo docente, discente e técnico envolvido com a atividade de pesquisa.

Essas medidas podem comprometer a função social da universidade. Sem dúvida, o corpo docente de uma universidade é o principal responsável pela excelência de suas atividades acadêmicas e de pesquisa. É a relação deste corpo docente com o ensino, a pesquisa e a extensão que garante boa qualidade na universidade. A permissão para que o corpo docente das instituições públicas de ensino possa se afastar, sem ônus, da realização da atividade principal da universidade para prestar serviços de P&D é, sem dúvida, uma desarticulação do papel principal da universidade.

São os grupos de pesquisas, em sua maioria liderados por docentes, que promovem a formação através do exercício da atividade com os estudantes de graduação e de pós-graduação. Vale ressaltar que o corpo técnico, além de ser essencial para o funcionamento administrativo da universidade, em muitos grupos cumpre papel decisivo na pesquisa. Os estudantes, por sua vez, sentirão em sua formação a mudança do caráter dos grupos de pesquisas, a ausência de professores e o caráter da bolsa de suporte inovação distinto da bolsa de pesquisa.

As dificuldades encaradas pela comunidade acadêmica em realizar a pesquisa e a disputa de poder no campo científico são, sem dúvida, estímulo para essa nefasta integração entre a universidade e a empresa. As relações de poder e a busca por status acadêmicos atuam como um véu que encobre os reais riscos dos quais a universidade está diante. Os que estão convencidos de que a integração entre universidade e empresa é um bom negócio para a universidade resistem em se ver como peças de uma engrenagem que pode falhar a qualquer momento, basta uma crise econômica ou redirecionamento da economia. Não percebem a ameaça à sua autonomia e a possibilidade de em algum tempo não ser reconhecido mais pela pesquisa que produz porque ela não mais lhe pertence. Além disso, prima a velha máxima da ingenuidade de que o dinheiro privado é mais ágil e melhor. É mister, neste caso, lembrar que o dinheiro privado vindo da Embrapii é público em sua maior fatia.

A aproximação de setores da intelectualidade com o poder e a submissão e às suas políticas não é uma novidade. No período da ditadura civil-militar, a política para C&T promoveu grupos e linhas de pesquisa mais afins com o projeto de desenvolvimento estabelecido. Atualmente, o desenvolvimento proposto é através da Inovação. Entra em voga uma visão pragmática e utilitária que põe em risco a autonomia e a existência da universidade como instituição de ensino, extensão e pesquisa em alguns anos.

Todavia, é preciso considerar o setor que sucumbe à pressão pela integração por não ver outra saída e ainda alguns que optam pela vexatória situação de crowndfounding ou financiamento coletivo, preferindo pedir doações no lugar de lutar na defesa da universidade pública para que esta receba financiamento público. Somando forças, assim, aos que permanecem resistentes à destruição da universidade pública.

Essa breve avaliação do novo marco tecnológico indica que a universidade poderá ser golpeada em sua coluna vertebral. A lei e os cortes no orçamento da pós-graduação – que em 2015 atingiram 75% e que para 2016 já estão previstos em 50% no Rio de Janeiro, segundo a Faperj – indicam que, se não houver resistência, a universidade caminha para uma situação na qual para sobreviver será preciso vender serviços.

O argumento de que o Estado investe pouco em inovação não precisa de muita pesquisa para ser derrubado. Estudo publicado em 2010 mostra que os investimentos em pesquisa no Brasil têm atingido patamares próximos aos de países centrais quando se trata de investimento público. Entretanto, quando a comparação é em relação aos investimentos feitos pelo setor privado nos mesmos países, a distância aumenta bastante. Segundo Brito Cruz (2010), comparando o dispêndio governamental em P&D, a situação do Brasil se aproxima dos países que mais investem, segundo a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OECD). No entanto, quando essa comparação se dá no campo do dispêndio privado, o percentual despenca.

Em vez de o governo brasileiro cobrar o investimento privado para construção de centros de pesquisa e inovação, cede a estrutura da pesquisa que tem se consolidado nos últimos 50 anos a partir de investimento público para o compartilhamento de risco do setor privado no mercado. Promove, desse modo, o desmantelamento da universidade pública pela destruição de seu tripé de sustentação: o ensino, a pesquisa e a extensão.

Talvez a universidade pública esteja atravessando o processo mais intenso de transformação de sua história. A ampliação do ensino superior através da adesão das universidades federais ao Reuni implicou na precarização do trabalho docente e na formação dos estudantes. A outra medida de expansão, o Ensino á Distância, possui forte potencial para ofertas de vagas porque não utiliza os mesmos padrões de investimento e contribui para a dissociação entre o ensino, pesquisa e extensão, comprometendo a formação. Os sucessivos cortes orçamentários junto com o novo marco de C&T podem ser um golpe fatal. A universidade pública tem sido instada a atender as demandas do setor produtivo privado em troca de financiamento, confirmando que o processo dito de desenvolvimento aplicado no Brasil não se coaduna com uma produção científica independente.

A universidade vive atualmente uma agonia pública. Os jornais noticiam constantemente que uma parcela de sua comunidade (os terceirizados) frequentemente está sem receber seus salários e os hospitais universitários sem condições de funcionamento. Entretanto, as políticas de ampliação do ensino superior e a integração entre universidade e empresa podem provocar o processo mais destrutivo da história da universidade brasileira.

Notas

[i] Simone Silva. Um novo padrão de financiamento e um novo tipo de pesquisa. Blog Junho, 16 out. 2015. Disponível em: http://bit.ly/1SsENvH

[ii] Luis Carlos Bresser Pereira. Crise econômica e reforma do Estado no Brasil: para uma nova interpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996.

[iii] Embrapii. Quem somos. 2014. Disponível em: http://bit.ly/1Hy8aTs

[iv] Washington Luiz. Dilma sanciona novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação. O Globo, 11 jan. 2016. Disponível em: http://glo.bo/1mDoheo

[v] Paulo Saldaña. O caminho do dinheiro privado nas universidades públicas. O Estado de S. Paulo, 12 abr. 2015. Disponível em: http://bit.ly/1zaGcJA

[vi] Iara Guimarães Altafin, Cortes na pós-graduação comprometem pesquisas, alertam representantes de universidades. Agência Senado, 1 set. 2015. Disponível em: http://bit.ly/1KlpGSc

[vii] Herton Escobar . Ciência do País vive pior crise em 20 anos. O Estado de S. Paulo, 30 ago. 2015. Disponível em: http://bit.ly/1F9zOWa

[viii] Ascom do MCTI. Finep libera recursos para modernizar a pesquisa científica nas universidades. MCTI, 18 jan. 2016. Disponível em: http://bit.ly/1KS3zmh

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