* Rego, Fortes, Borges, Brito, Costa, Narciso, Palácios, Schramm, Thomé, 2020

 

Para iniciarmos a discussão sobre essa questão, é importante lembrarmos a legislação brasileira que a trata diretamente. Vejamos, o Congresso Nacional aprovou, com o Decreto Legislativo no 395, de 9 de julho de 2009, o Regimento Sanitário Internacional que havia sido aprovado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde em 15 de junho de 2005. A Presidência da República, por sua vez, publicou, em 30/01/2020, o decreto 10.212, formalizando aquela decisão. Em seguida foi aprovada, pelo Congresso Nacional, a lei no 13.979, em 6 de fevereiro de 2020 dispondo “sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. 

 

Esta legislação está relacionada com o Regimento Sanitário Internacional, que lista, em seu artigo 18, item 1, diversas orientações que a OMS poderá incluir nas recomendações que formule aos Estados partes em relação a pessoas. Para o propósito desta reflexão gostaríamos de destacar as recomendações:

“- Colocar pessoas suspeitas sob observação de saúde pública;

- Implementar quarentena ou outras medidas de saúde pública para pessoas suspeitas;

- Implementar isolamento e tratamento de pessoas afetadas, quando necessário;”

Essas mesmas recomendações mereceram, do Ministério da Saúde, uma regulamentação (portaria nº 356, de 11 de março de 2020) que determina que o isolamento, medida que tem como objetivo a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, infectadas ou sob investigação quanto a sua contaminação pelo novo coronavírus, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local , pode ser determinado por ato médico ou por recomendação da vigilância epidemiológica. Já a quarentena terá como objetivo garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado. Segundo a mesma portaria, e diferentemente do isolamento, a medida de quarentena pode ser determinada mediante ato administrativo por Secretarias de Saúde, por exemplo, entre outras instâncias. O descumprimento de qualquer uma dessas medidas seria enquadrada como crime, de acordo com os artigos 131 e 132 do Código Penal Brasileiro (Decreto Lei 2848/1940) que definem como crime “Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio” e “Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”.

Importante também mencionar que medidas de isolamento de casos e contactantes são historicamente utilizadas no controle de surtos de doenças infecciosas. Tais medidas voltam a ser relevantes no contexto da COVID-19, e talvez ganhem importância ainda maior já que não existem opções preventivas (farmacológicas) ou terapêuticas para o seu combate.

Sendo assim, perguntamo-nos: “Os indivíduos têm o direito de recusar algumas dessas medidas, caso não concordem?”

A fim de respondermos a essa pergunta, convém primeiramente resgatarmos a noção mesma de “direito” (do latim directum), cujo sentido expressa a ideia de “direção”, “referência comum”. Como bem observa Alain Supiot1 (2007, pg. XXVII), é desse sentido original que se alimenta a ideia de um Estado concebido à imagem do poder pontifical (Estado legislador), fonte ao mesmo tempo da ordem jurídica (O “Direito”, escrito em maiúsculo) e das prerrogativas e garantias individuais (os “direitos”, escrito em minúsculo). Desta forma, quando tratamos de pensar a legitimidade destes últimos, não deveríamos falar apenas de um conjunto de expectativas perante a autoridade sancionadora do Estado (os direitos como mera concessão da força!), mas daquilo que torna possível o próprio vínculo político entre os seus cidadãos, isto é, de uma comunidade de indivíduos ligados entre si pelo mútuo compromisso com o bem-estar de cada qual e de todos (esta, sim, a nossa “direção comum”, a que confere verdadeiramente o “poder” ao Estado!). Sob este aspecto, pode-se dizer que o problema da validade de um direito sempre corresponde, no plano de uma avaliação ética, ao lugar que ele ocupa como medida do respeito recíproco.

Voltando então à nossa pergunta, talvez devêssemos articulá-la ainda a uma outra indagação. Neste caso, precisamos nos questionar com a máxima franqueza sobre quais dessas medidas são realmente capazes de representar, em termos políticos, uma ética do respeito recíproco. Para tanto, devemos partir não somente da função tuteladora do Estado sobre a vida, mas também do pressuposto da devida consideração à autonomia dos indivíduos, razão de ser, inclusive, de sua imputabilidade moral e jurídica. Com base nestas premissas, a primeira coisa que chama atenção na proposição de tais medidas é o caráter altamente restritivo de, pelo menos, dois direitos fundamentais para o exercício da autonomia: o direito de ir e vir (caso da quarentena e isolamento) e o direito à recusa terapêutica (caso do tratamento compulsório) – direito este reconhecido pelo próprio código brasileiro de ética médica (Resolução CFM 2217/18). Em ambos os casos, o argumento mais frequentemente empregado é o de que o interesse coletivo tem prioridade sobre o interesse individual, o que justificaria, em tese, a restrição de certas liberdades em benefício da coletividade. Em outras palavras, trata-se de um raciocínio baseado na primazia da saúde pública em relação a qualquer outro interesse particular, e cuja defesa impõe, em situações como a da atual pandemia, a adoção de medidas que visem à prevenção dos riscos e à anulação da cadeia de transmissão.

Ora, não resta dúvida que, em se tratando das medidas de isolamento e quarentena, o argumento apresentado acima pode perfeitamente ser interpretado como uma medida de respeito recíproco – desde que, é claro, todos os demais direitos sejam garantidos a quem estiver cumprindo essas medidas. No entanto, o mesmo não parece ocorrer com a necessidade de submeter compulsoriamente os indivíduos a tratamento médico. Neste caso, não fica clara qual a relação entre uma coisa e outra, ou seja, não parece tão evidente como a intervenção terapêutica, não raramente marcada pela utilização de métodos invasivos bem como pela aplicação de medicamentos que também incluem riscos à saúde, pode servir como meio de proteção ao bem-estar coletivo. Exceto em circunstâncias talvez muito singulares, um indivíduo adoecido, uma vez isolado, não oferece risco à saúde de terceiros. 

Neste sentido, parece oportuno mencionarmos aqui o documento “Ethics guidence for the implementation of the End TB Strategy”2, cujas diretrizes anotam o caráter claramente antiético do tratamento compulsório. Como se vê, mesmo em se tratando de uma grave doença transmissível (tuberculose) e com tratamento disponível, a medida é, ainda assim, vista como inadequada, já que “forçar esses pacientes a se submeterem ao tratamento por causa de sua objeção exigiria invasão inaceitável da integridade corporal (...)”, além também de “colocar prestadores de cuidados de saúde em risco”.

Em relação ao contexto específico da pandemia de Covid-19, vale lembrarmos que o prefeito do Rio de Janeiro manifestou-se preocupado com o bem-estar da população de idosos residentes em favelas e teria feito um acordo com os proprietários de três hotéis localizados nesta cidade, para onde ele gostaria de levar idosos voluntários, embora a Portaria em questão preconize o isolamento domiciliar. A oferta incluiria até mesmo quartos de frente para o mar e três refeições diárias entregues no quarto onde ficariam confinados para sua própria proteção. A justificativa parece razoável, já que, de acordo com o IBGE (PNAD/2018), cerca de onze milhões e meio de brasileiros moram em casas com uma concentração maior do que três pessoas por dormitório! Entretanto, para o espanto do prefeito, poucos foram os idosos que aceitaram o convite e solicitaram a hospedagem3. Alguns idosos entrevistados por repórteres alegaram que “gostavam da própria casa” e “queriam ficar perto da família”. Alguns aceitaram o convite e muitos não aceitaram. Tudo poderia terminar assim: convite feito, alguns aceitos, outros negados e vida que segue. Mas não! Ficamos genuinamente surpresos ao lermos em periódicos nacionais que o prefeito estava pretendendo requerer à justiça para impor o isolamento compulsório de idosos residentes em favelas! Nas manifestações mais recentes o prefeito incluiu idosos de Copacabana nesta proposta. Seja qual for a extensão da proposta, não há dúvidas de que ela parece ultrapassar uma avaliação de razoabilidade. Sem querer imaginar que possam existir fundamentos não-republicanos na orientação dessa proposta, chama inicialmente atenção o fato de que ela estaria contrariando exatamente a regulamentação feita pelo Ministério da Saúde sobre quem deve ou pode ser colocado em isolamento: indivíduos que estejam contaminados ou que estejam em processo de investigação diagnóstica a fim de evitar a propagação da infecção e transmissão local.

Curiosamente, a portaria em questão traz em seu artigo terceiro o seguinte parágrafo: “§4º A determinação da medida de isolamento por prescrição médica deverá ser acompanhada do termo de consentimento livre e esclarecido do paciente, conforme modelo estabelecido no Anexo I.” Ora, parece ter ocorrido um equívoco conceitual importante neste caso. Se a medida de isolamento é tomada pelas autoridades responsáveis de acordo com a regulamentação, solicitar a assinatura de um termo de consentimento livre e esclarecido seria considerar que a observação dessa medida seja algo que estaria protegida pelo livre-arbítrio do indivíduo em questão, o que não se aplica, pois neste caso seria compulsório. O documento deveria ser um “Termo de Ciência e Compreensão”, já que, formalmente, o indivíduo não teria o direito de se recusar. É claro que é possível apresentar essa recusa, mas isso levará às possíveis consequências previstas no código penal.

Assim, retomando as ideias defendidas ao longo desta reflexão, é bastante razoável e justificável que alguém, mesmo sendo pessoa legalmente considerada idosa, que não esteja contaminado pelo vírus ou sendo avaliado uma possível contaminação se recuse a ser compulsoriamente isolado. O isolamento pode e deve ser voluntário, salvo nos casos de pessoas já sabidamente contaminadas, pela possibilidade de prejudicar terceiros e ferir com isso a ética do respeito recíproco. Claro que devemos continuar a testar essa pergunta original para outros campos; por exemplo, em relação à participação em pesquisas estratégicas para o enfrentamento da pandemia. Voltaremos a este tema em um outro artigo.

  

Notas:

1 Alain Supiot. Homo Juridicus: ensaio sobre a função antropológica do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

2 Disponível em: https://www.who.int/tb/publications/2017/ethics-guidance/en/.

3 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/idosos-de-favelas-resistem-apassar-quarentena-em-hotel-no-rio.shtml

 

Autores:

Sergio Rego, Ensp/Fiocruz – PPGBIOS - PQ CNPq – GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Pablo Fortes, Ensp/Fiocruz - PPGBIOS – GT Bioética Abrasco

Heloisa Helena Barboza, Faculdade de Direito/UERJ, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Luna Borges, UnB, IPPF. Luciana Brito, Anis Alexandre Costa, Nubea/UFRJ – PPGBIOS, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Luciana Narciso, Nubea/UFRJ, Ensp/Fiocruz/PPGBIOS – GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Marisa Palácios, Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Fermin Roland Schramm, Ensp/Fiocruz, PPGBIOS Beatriz Tome, UNIFESP/

 

Contribuições:

Sergio Rego e Pablo Fortes escreveram a primeira versão do texto, que foi debatida com os demais autores e escrito sucessivas versões até chegarmos à versão final.

• Todos os autores participam do Observatório Covid-19, GT de Bioética, organizado na Fundação Oswaldo Cruz.

• Participam do GT de Bioética do Observatório Covid-19 docentes da: Ensp/Fiocruz, Nubea/Ufrj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de São Paulo. Docentes do Programa de Pós-graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS), do GT Bioética da Abrasco e da Rio de Janeiro Unit of the International Network of the Unesco Chair in Bioethics at Haifa.

 

DOI: 10.13140/RG.2.2.10933.83685

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