*Rego, Palácios, Marinho, Brito, Narciso, Santos, Fortes, Lopes, 2020.

 

Em abril de 2020, foi divulgado o parecer 4/2020 do CFM (2020), de autoria do Conselheiro Relator Mauro Luiz de Britto Ribeiro, acerca do “Tratamento de pacientes portadores de COVID-19 com cloroquina e hidroxicloroquina”. Tal parecer, cuidadoso ao apenas propor que seja considerada a possibilidade de uso de tais medicamentos e não de recomendar tal uso, também foi cauteloso ao finalizá-lo ressaltando que as considerações apresentadas eram baseadas no conhecimento disponível naquele momento e que poderiam ser modificadas a qualquer tempo. O objetivo deste ensaio não é o de discutir a pertinência ou não do uso das duas drogas no tratamento precoce dos enfermos da Covid-19, pois consideramos que muitas publicações de estudos científicos já apresentam evidências sobre a não-eficácia do tratamento na administração destes medicamentos, mas efeitos adversos como arritmias cardíacas (Singh et al., 2020; Cipriani et al.,2020; Mercuro et al., 2020; Ramireddy et al., 2020; Mazzanti et al., 2020; Geleris et al., 2020). Organizações científicas também se manifestaram sobre a inexistência de qualquer evidência no uso de tais medicamentos ou inclusive sobre o abandono de recomendação de sua administração para o tratamento de pacientes infectados pela Covid-19 (WHO, 2020). Ainda aguardamos que o CFM se manifeste novamente, a partir das novas evidências disponíveis, já que este parecer é um dos fundamentos que amparam o documento do Ministério da Saúde nominado “Orientações do Ministério da Saúde para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da covid-19” (Brasil, 2020), igualmente defasado. 

 

O objetivo deste ensaio é o de discutir de que forma a autonomia do paciente está sendo interpretada, tanto no Parecer do CFM, como na diretriz do MS. Em ambos os documentos, recomenda-se a obtenção do consentimento do paciente antes da prescrição dos dois medicamentos em questão. Embora não tenhamos aqui um levantamento prévio que nos permita afirmar desde quando os pareceres do CFM preconizam a assinatura de um consentimento antes de ser prescrito um medicamento pelo médico, essa não nos parece ser uma prática corriqueira. Vejamos dois extratos do Parecer (todos os grifos nas citações são nossos):

“a) Considerar o uso em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, em que  tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de COVID 19, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso;

b) Considerar o uso em pacientes com sintomas importantes, mas ainda não com necessidade de cuidados intensivos, com ou sem necessidade de internação, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo o médico obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso;” (CFM, 2020)

Estes incisos destacam três aspectos importantes do processo de cuidado no que toca ao respeito à autonomia dos pacientes. A primeira questão é o reconhecimento da autonomia dos pacientes como um princípio a ser respeitado pelos médicos em sua atuação; a segunda aponta para a necessidade de que este respeito à autonomia seja registrado em um documento legalmente válido (no caso o TCLE) e, por último, que a decisão deva ser compartilhada entre pacientes,agentes morais ativos e senhores de suas vidas, e seus cuidadores. Foi incluída a indispensável menção ao consentimento ser obtido dos familiares, quando for o caso – embora não explicite que caso(s) poderia(m) ser esse(s), supomos que estivesse sendo pensado no caso de menores.

 

Essas duas considerações emanadas do Parecer do CFM foram incorporadas na diretriz do Ministério da seguinte forma:

“Considerando que a prescrição de todo e qualquer medicamento é prerrogativa do médico, e que o tratamento do paciente suspeito ou portador de COVID-19 deve ser baseado na autonomia do paciente ou de seu responsável legal, caso o paciente esteja incapacitado ou seja menor de idade, por meio do termo de consentimento livre e esclarecido, e deve também respeitar a autonomia do médico, com o intuito de qualificar a relação médico-paciente para oferecer o melhor tratamento disponível no momento. Considerando que o Conselho Federal de Medicina recentemente propôs a consideração da prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina pelos médicos, em condições excepcionais, mediante o livre consentimento esclarecido do paciente, para o tratamento da COVID-19 (Brasil, 2020)

Embora igualmente se amparem na ideia do respeito à autonomia do paciente, nos perguntamos se essas diretrizes efetivamente reconhecem o direito dos pacientes decidirem efetivamente sobre como querem se tratar ou ser tratados? Qual seria o limite deste direito? Segundo o índice disponível no Código de Ética Médica (CEM), o princípio do respeito à autonomia do paciente estaria previsto em dez incisos ou artigos do atual CEM, a saber: “Autonomia do paciente Cap. I- XXI e XXIII Cap. III – art. 15 Cap. IV – art. 24 Cap. V – art. 31, 41e 42 Cap. IX – art. 74 Cap. XII – art. 101 e 110”. Não abordaremos todas essas entradas, apenas as que estão relacionadas ao tema aqui abordado. Assim, logo no inciso XXI do primeiro capítulo do Código está determinado:

“XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.” (CFM, 2018: 17)

O artigo 24 trata da autonomia do paciente em sua plenitude, afirmando ser vedado ao médico: “Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo” (CFM, 2018: 25)

 

Já o artigo 31 estabelece alguns limites à obrigação estabelecida no artigo 24 quando veda ao médico “desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte” (CFM, 2018: 27). Esta restrição também se manifesta no artigo 41, quando veda ao médico “abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal” (CFM, 2018: 28) e determina o dever de assegurar cuidados paliativos aos pacientes com doenças incuráveis e em estado terminal. Entretanto, a “boca torta devido ao uso do cachimbo” se manifesta ainda antes do fim do parágrafo único, onde veda ao médico “empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas” (CFM, 2018: 28). Ora, perguntará alguém: quem pode se opor a proibição de ações que sejam inúteis ou obstinadas? De fato, esse é um comportamento que muitos cidadãos também condenariam. A questão que precisa ser esclarecida é outra: o conceito de ação inútil ou obstinada tem o médico como protagonista, não o paciente. É ao médico que é assegurado o direito de decidir o que é fútil, o que é obstinado ou quando o quadro clínico deve ser considerado como levando o paciente ao iminente risco de morte. Ou seja, ao médico é facultado o direito de negar algum tratamento adicional ou mesmo um teste diagnóstico adicional, se for por ele considerado fútil, mas pode impor um novo exame ou uma nova medicação caso defina a situação como de risco de morte iminente, sabendo-se a imprecisão desta expressão.

 

É no artigo 101 o único momento em que o CEM menciona a obtenção de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de um paciente, como determina literalmente o Parecer do CFM e a diretriz do Ministério da Saúde. Neste artigo está mencionada a obrigação de obter o TCLE no contexto de uma pesquisa científica. Devemos ressaltar que o uso da cloroquina ou da hidroxicloroquina no tratamento precoce de pacientes com a Covid-19 não é preconizado como uma terapêutica respaldada por fundamentos e estudos reconhecidos pela comunidade científica. Igualmente ela não é mais incluída pelas autoridades sanitárias mundiais em seus protocolos de investigação científica. Seu uso deve ser entendido como off-label, ou seja, como um tratamento não aprovado no processo de registro do medicamento e que ocorreria por conta e risco do profissional que o prescreva. Entretanto, entendemos que o parecer do CFM e a insistência com que representantes do governo federal se manifestam a favor do uso off-label de diversos medicamentos tem estimulado que governos municipais criem programas de distribuição deles para a população em geral, como podemos ver na reportagem do Zero Hora (2020) que mostra que alguns prefeitos também buscam transferir a responsabilidade pelo uso do medicamento para o usuário, mediante assinatura do termo de consentimento.

 

Isso nos leva a duas perguntas adicionais: por que e qual a consequência do uso do TCLE em situações como estas? As respostas não são muito favoráveis para a corporação médica, de um ponto de vista do exercício de suas atividades em nome do melhor interesse da população e de acordo com seu Código de Ética. O que representa um paciente assinar uma declaração na qual declara que “por livre iniciativa, aceito correr os riscos supramencionados e dou permissão/autorização voluntária para que os medicamentos sejam utilizados da forma como foi exposto no presente termo”? Parece óbvio que a intenção por trás da utilização de um termo como esse é o de eximir os profissionais, o CFM e os agentes públicos do Ministério da Saúde da responsabilidade objetiva pela prescrição de medicamentos sobre os quais não se tem amparo científico para justificar. Aliás, como afirma o inciso XXI, já mencionado anteriormente, “o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas” (CFM, 2018: 17). Ou seja, como não há fundamento científico que ampare uma decisão de prescrever os dois medicamentos em questão não parece ser razoável e coerente que o CFM tenha recomendado que eles sejam considerados e nem o Ministério em incorporá-los em suas diretrizes. Assim, não é aceitável, na vigência do Código de Ética Médica de 2018, que se transfira ao paciente a responsabilidade pela prescrição de medicamentos off-label. Essa decisão é, nos termos do CEM atual, responsabilidade primaria do médico prescritor sendo eticamente inaceitável a transferência da responsabilidade deste ato para o paciente ou sua família.

 

Por fim, faz-se necessário que o processo de “consentimento” de pacientes deixe de ser considerado como o registro de uma “vontade” expressa em um documento. O que o Parecer do CFM menciona, sem qualquer sinal sobre o entendimento que o CFM tem sobre “decisão compartilhada” precisa ser efetivamente aprofundada, difundida e incorporada no processo de cuidado. Decisão compartilhada não significa que alguém assine um documento depois de ser informado sobre algo, mas um processo de compartilhamento de infor mações em linguagem acessível, livre de coerção, sensível aos valores do paciente (diretamente ou, quando impossibilitado de se comunicar, através de sua família) e esclarecimento de dúvidas para que a decisão esteja amparada efetivamente nos valores do paciente 

 

Referências:

Singh AK, Singh A, Singh R, Misra A. Hydroxychloroquine in patients with COVID-19: A Systematic Review and meta-analysis. Diabetes Metab Syndr Clin Res Rev [Internet]. 2020;14(4):589–96.

Cipriani A, Zorzi A, Ceccato D, Capone F, Parolin M, Donato F, et al. Arrhythmic profile and 24-hour QT interval variability in COVID-19 patients treated with hydroxychloroquine and azithromycin. Int J Cardiol. 2020;1–6.

Mercuro NJ, Yen CF, Shim DJ, Maher TR, McCoy CM, Zimetbaum PJ, et al. Risk of QT Interval Prolongation Associated with Use of Hydroxychloroquine with or without Concomitant Azithromycin among Hospitalized Patients Testing Positive for Coronavirus Disease 2019 (COVID-19). JAMA Cardiol. 2020;E1–6.

Ramireddy A, Chugh HS, Reinier K, Ebinger J, Park E, Thompson M, et al. Experience with Hydroxychloroquine and Azithromycin in the COVID-19 Pandemic: Implications for QT Interval Monitoring. J Am Hear Assoc [Internet]. 2020;1–21.

Mazzanti A, Briani M, Kukavica D, Bulian F, Marelli S, Trancuccio A, et al. Association of Hydroxychloroquine with QTc Interval in Patients with COVID-19. Circulation.2020;1–8.

Geleris J, Sun Y, Platt J, Zucker J, Baldwin M, Hripcsak G, et al. Observational Study of Hydroxychloroquine in Hospitalized Patients with Covid-19. N Engl J Med [Internet]. 2020;1–8.

World Health Organization. WHO discontinues hydroxychloroquine and lopinavir/ritonavirtreatment arms for COVID-19 [Internet]. 2020 Disponível em

https://cesrj.com/2020/07/17/hidroxicloroquina-nao-tem-efeito-e-deve-ser-abandonada-no-tratamento-da-covid-diz-sociedade-brasileira-de-infectologia/

Conselho Federal de Medicina (CFM). Processo-consulta CFM nº 8/2020 – Parecer CFM nº 4/2020 – disponível em http://www.saude.mppr.mp.br/arquivos/File/Corona/CFM/6.pdf Acesso em 18/07/2020.

Brasil. Ministério da Saúde. Orientações do Ministério da Saúde para Manuseio Medicamentoso Precoce de Pacientes com Diagnóstico da COVID-19. Brasília, DF:

Ministério da Saúde, 2020, 36p. Disponível em: https://saude.gov.br/images/pdf/2020/June/18/COVID-FINAL-16JUNHO-Livreto-1-V3.pdf Acesso em 18/07/2020.

Conselho Federal de Medicina (CFM). Código de Ética Médica. Resolução CFM Nº 2.217/20181. Publicada no D.O.U. de 1° de novembro de 2018, Seção I, p. 179. Disponível em http://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf Acesso em 18/07/2020.

Brasil. Ministério da Saúde. Termo de Ciência e Consentimento - Hidroxicloroquina/Cloroquina em associação com Azitromicina para COVID 19. Disponível em https://saude.gov.br/images/pdf/2020/May/20/Termo-de-Cie--ncia-e-Consentimento-Hidroxicloroquina-Cloroquina-COVID-19.pdf Acesso em 20/07/2020.

Zero Hora. O que dizem os prefeitos que pretendem distribuir ivermectina e outros remédios para prevenir a covid-19. 10 de julho de 2020. Disponível em:

https://gauchazh.clicrbs.com.br/politica/noticia/2020/07/o-que-dizem-os-prefeitos-que-pretendem-distribuir-ivermectina-e-outros-remedios-para-prevenir-a-covid-19-ckcg7sklw00300147shr5yr3j.html

 

  • DOI: 10.13140/RG.2.2.28338.22729 

Autores:

Sergio Rego - Ensp/Fiocruz – PPGBIOS - PQ CNPq – GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa, Projeto Wellcome Trust/Fiocruz - Grant n.218750/Z/19/Z. O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

Marisa Palácios – Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa.

Suely Marinho – HUCFF/UFRJ, Nubea/UFRJ. GT Bioética Abrasco.

Luciana Brito – Anis, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa, GT de Bioética da Abrasco, Wellcome Trust/Fiocruz Grant n. 218750/Z/19/Z.

Luciana Narciso - Ensp/Fiocruz - PPGBIOS – Nubea/UFRJ - GT Bioética Abrasco – Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair Haifa.

Roberta Lemos Santos – Ensp/Fiocruz - Wellcome Trust/Fiocruz Grant n. 218750/Z/19/Z.

Pablo Dias Fortes – Ensp/Fiocruz – PPGBIOS - GT Bioética Abrasco - Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Fernanda Lopes – Ensp/Fiocruz, PhD candidate PPGBIOS.

 

Contribuições: Sergio Rego escreveu a primeira versão do texto, o qual foi debatido com os demais autores. Elaboraram-se, então, sucessivas versões, até a presente, considerada final, do manuscrito.

Todos os autores participam do Observatório Covid-19, GT de Bioética, organizado na Fundação Oswaldo Cruz. 

Participam do GT de Bioética do Observatório Covid-19 docentes da: ENSP/Fiocruz,NUBEA/Ufrj, UERJ, UFF, UFV, UNIFESP; também, docentes do Programa de Pós-graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS), do GT Bioética da Abrasco e da Rio de Janeiro Unit of the International Network of the Unesco Chair in Bioethics at Haifa

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