*Thomé, Borges, Brito, Fortes, Palácios, Rego, Schramm, Matta, 2020

 

A pesquisa na área da saúde, em particular os estudos que envolvem seres humanos, tem um foco primordialmente biomédico, compreendendo os eventos relacionados à saúde humana como exclusivamente biológicos, sem levar em conta necessariamente o seu entorno social, econômico e cultural. Esse é caso notadamente de ensaios clínicos multicêntricos. Em meados da década de 60 apesquisaparticipativaisurgiu comopropostaalternativa aos modos de pesquisa clássicos.

 

A pesquisa participativa prevêengajamento da comunidadeque compreenda potenciais participantes de pesquisana tomada de decisõese portanto melhor aplicabilidade dos resultados para a própria comunidade. É importante ressaltar que para fins de compreensão deste texto, por comunidade entende-se o grupo de pessoas passíveis de terem seus representantes convidados a participar em pesquisa envolvendo seres humanos. Esta definição de comunidade pode ter sentidos vários, e pode significar grupos específicos unidos por: algumavulnerabilidadeem particular, um senso de identidade, serem moradores de um local específico, ou, por vezes, de um país inteiro. A pesquisa participativa inclui os indivíduos e suas vozes no centro do debate para que sejam agentes de transformação local comunitária. Assim, aprópria comunidadeonde está sendo conduzida a pesquisapassaa ser ouvida sobre seus próprios problemas, fomentando construções coletivas entre comunidade,pesquisadores e gestores públicos. Esse aspecto traz reflexões importantes por exemplo ao não colocar a comunidade num papel de cenário da pesquisaapenas, mas sim valoriza a sua participação de forma significativa durante todo o seu ciclo: do seu desenho, à sua condução e retorno e disseminação dos resultados. A pesquisa participativa prevê portanto oestabelecimento de cooperação equitativa que inclusive colabora para a capacitaçãoda comunidadepara desenvolver seus próprios estudos.

Durante outros surtos recentes de doenças infecciosas tais como Ebola e Zika, assim como situações de desastres naturais, durante as quais conduziu-se pesquisa de grande relevância para a ciência, houve relatos de não envolvimento de pesquisadores, instituições de pesquisa, e autoridades sanitárias locais no processo de tomada de decisões, de desenho ou condução da pesquisa–tampouco retorno dos pesquisadores à comunidade após a finalização da pesquisa ii. Em particular durante uma pandemia como a dacovid-19, seria fácil justificar a abordagem da pesquisa de perspectivabiomédicae menos participativa, por diversos motivos. Em primeiro lugar há pressa em obter resultados em relação a novas opções terapêuticas ou profiláticascontra a covid-19. Adicionalmente,durante uma pandemia, os interesses públicos do coletivo mais amplo (nacional einternacional) podem se suplantar aos interesses de uma comunidade específica, de grupos específicos. Finalmente, as comunidades podem se deparar com Boas práticas de envolvimento da comunidade na preparação e condução de pesquisa(Thomé, Borges, Brito, Fortes, Palácios, Rego, Schramm, 2020) protocolos de pesquisa de estudos multicêntricos que utilizam protocolos harmonizados de pesquisa, com metodologia e desfechos pré-determinados.

Apesar das barreiras expostas acima, e mesmo nos estudos multicêntricos originados fora do País, comunidades deveriam ser envolvidas no processo de pesquisa ao redor da covid-19 da forma mais abrangente possível, uma vez que as repercussões sociais, políticas, econômicas, sanitárias, psicológicas, entre outras, assumem dimensões inéditas no contexto da pandemia. As iniquidades decorrentes das relações entre os países e sua capacidade de resposta e proteção à população e grupos vulneráveis reforçam a necessidade de estratégias inclusivas e participativas de pesquisa.No desenho e condução de ensaiosclínicos em particular, comitês de ética têm a oportunidade de revisar se o protocolo prevê o envolvimento e respeito às comunidades.O valor ético de tratar o outro como igual se traduz durante uma pandemia por exemplo em relações transparentes entre pesquisadores e comunidades que participarão em estudos clínicos (ou outros), assim como entre instituições de pesquisa. As premissas da pesquisa participativa podem servir de referencial para o envolvimento mais significativo dacomunidade a participar de esforços de pesquisa. Neste sentido, seguem algumasboas práticas sugeridas:

•Em situações de parcerias internacionais, os protocolos de pesquisa propostos para serem considerados devem estar harmonizados com osinteresses locais, e no caso de pandemias como a docovid-19, estar alinhados com a resposta à pandemia.Também devem ser, além de cientificamente relevantes, construídos de maneira ética e culturalmente aceitável no país, ou no local onde será implementado.

•Abordagens de envolvimento da comunidade devem ter início no financiamentodo projeto de pesquisa: instituiçõesfinanciadoras deveriam exigir planos coerentes e exequíveis de envolvimento da comunidade de pesquisadores apresentando propostas de pesquisa. De maneira análoga, instituições reguladoras éticas e sanitárias devem fazer essa mesma avaliação, e exigir de equipes de pesquisa tais provisões.

•Processos de tomada de decisões ao redor da pesquisa devem ser osmais inclusivos possíveis. Minimamente, governos e instituições de pesquisa locais devem ser envolvidos o mais precocemente possível na discussão de protocolos de pesquisa, seus objetivos, metodologia e planos de divulgação de seus resultados. Na impossibilidade de se obter estenível de inclusão,por fatores como tempo ou no caso de protocolos multicêntricos, desde que preenchidos os demais critérios tais como adequação científica e ética para o país, atores locais devem ser envolvidos a partir do processo de implementação do protocolo de pesquisa, para fazer os ajustes necessários em respeito às particularidades culturais das comunidades.Boas práticas de envolvimento da comunidade na preparação e condução de pesquisa(Thomé, Borges, Brito, Fortes, Palácios, Rego, Schramm, 2020)

•Vale lembrar quea elite cultural de um país ou instituições de pesquisa não são de forma nenhuma representativos de determinadas comunidades,em particular as mais vulneráveis. Esforços devem ser feitos para de fato incluir membros oriundos destas comunidades no processode decisão, que sejam destas representativos, ou pelo menos seus melhores representantes, figuras que não são oriundos das comunidades per se, mas falam por elas e defendem seus direitos. São várias as situações em que a comunidade poderá ser assim representada, por exemplo: durante pesquisa formativa, processos de apreciação, condução, análise de dados do estudo e retorno de resultados à própria comunidade.

•Construção dialogada de orientações e recomendações relacionadas ao tema da pesquisa adaptadas e acessíveis ao contexto social, econômico, cultural e sanitário dos grupos e indivíduos participantes.

•Também importante será envolver comunidades não geográficastais como grupos de pacientes, pessoas mais vulneráveis para infecção ou pior prognóstico, ou pessoas afetadas por uma determinada doença, no momento em particular a covid-19,na tomada de decisões.Aconselha-se o aproveitamento de grupos de pacientes, redesou grupos comunitários previamente estabelecidos para a formação de grupos comunitários que assessorem o desenvolvimentode pesquisas.

•Na ausência de redes de pacientes/ redes comunitárias prévias a uma emergência de saúde pública como esta de covid-19, tratar o outro como igual deve significar a manutenção de uma comunicação clara e transparente entre as partes envolvidas(pesquisador-comunidade) desde o início deste vínculo, além do compromisso de estabelecimento de uma relação em que as vozes locais serão escutadas no desenrolar da pesquisa.

•O uso de mídias relevantes em linguagem acessível para a comunicação com as comunidades deve ser focado emesclarecer questões técnicas (com base científica) e desmentir notícias falsas por exemplo ao redor daspesquisas propostas. Um plano de comunicação de pesquisa pode ser mais eficaz se desenvolvida em conjunto com representantes das comunidades-alvo.

•Estabelecimento de estratégias de avaliação e discussão entre pesquisadores, instituições, financiadores e participantes sobre o processo de pesquisa, seus resultados e consequências no contexto pós-epidemia para identificar problemas, lacunas de conhecimento, comunicação e informação.Boas práticas de envolvimento da comunidade na preparação e condução de pesquisa(Thomé, Borges, Brito, Fortes, Palácios, Rego, Schramm, 2020)

Finalmente, devemos pensar na importância da constituição, no período entre epidemias, de grupos representativos de comunidades para que esses dispositivos possam discutir as repercussões pós-epidemia, e para queestejam de prontidão para novas oportunidades de atuação, por exemplo uma nova epidemia ou desastre natural que sejam alvo de projetos de pesquisa. Nunca é demais lembrar, aliás, que a própria Constituição Federal prevê a participação da comunidade como diretriz das ações e serviços públicos de saúde (Art. 198). Desta forma,o envolvimento de comunidades pode se dar de maneira muito mais eficaz, democrática e profunda.

 

Autores:

Beatriz Thomé–UNIFESP

Luna Borges-UnB, IPPF

Luciana Brito–Anis, Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Pablo Fortes-Ensp/Fiocruz -PPGBIOS,GT Bioética Abrasco

Marisa Palácios-Nubea/UFRJ, PPGBIOS, GT Bioética Abrasco -Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Sergio Rego-Ensp/Fiocruz, PPGBIOS,CNPq, GT Bioética Abrasco,Rio de Janeiro Unit/Unesco Chair of Bioethics at Haifa

Fermin Roland Schramm -Ensp/Fiocruz, PPGBIOS

Gustavo Matta –Ensp/Fiocruz

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Contribuições:

Beatriz Thomé escreveu a primeira versão do texto, que foi debatido com os demais autores e escritosucessivas versões até chegarmos à versão final

.•Todos os autores participam do Observatório Covid-19, GT de Bioética, organizado na Fundação Oswaldo Cruz.

•Participam do GT de Bioética do Observatório Covid-19 docentes da: Ensp/Fiocruz, Nubea/Ufrj, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de Viçosa, Universidade Federal de São Paulo. Docentes do Programa de Pós-graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS), do GT Bioética da Abrasco e da Rio de Janeiro Unit of the International Network of the Unesco Chair in Bioethics at Haifa.

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I - Dias S, Gama A. Investigação participativa baseada na comunidade em saúde pública: potencialidades e desafios. Rev Panam Salud Publica. 2014;(35)(2):150-4.

II - Research in global health emergencies, Nuffield Report, Jan 2020.

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DOI:10.13140/RG.2.2.30576.61440

 

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