Por: Sergio Rego (Ensp/Fiocruz; CNPq) e Marisa Palácios (Nubea/ UFRJ)

Há décadas que já se diz que a sociedade moderna, ocidental, reforça o individualismo e seus modelos econômicos estimulam e incentivam a competição. Incentiva-se a busca do sucesso individual e mal se disfarça uma certa complacência com meios que poderiam facilmente ser qualificados como amorais.

No Brasil e alhures, a preocupação com o outro começou a ser qualificado como uma mera estratégia de conquista e manutenção de poder político. Mais do que os resultados na disputa política o que acabamos verificando foi a intensificação do individualismo e a implementação de políticas que prejudicam profundamente a capacidade de sobrevivência com um mínimo de dignidade para gigantescos segmentos da população brasileira. Tem se intensificado um fenômeno que é facilmente observável em diferentes países ocidentais: o isolamento dos segmentos que desfrutam de privilégios econômicos e sociais em condomínios e pequenas ilhas de segurança e prosperidade.

Mas eis que surge um vírus que pode nos ajudar a compreender a vida em sociedade de uma forma mais aproximadamente humana. O poeta britânico John Donne escreveu, há cerca de cinco séculos, que “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída (...); a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” Esse poema foi lembrado por Hemingway em seu livro “Por quem os sinos tocam?” sobre a Guerra Civil Espanhola e merece ser lembrado agora também para enfatizarmos que não apenas o mundo hoje esta profundamente interligado, mas também os habitantes humanos. É uma perigosa ilusão achar que uma sociedade com desigualdades tão intensas como a nossa é capaz de garantir uma sobrevivência asséptica a qualquer de seus segmentos. Desta vez foi preciso um pequeno e desprezível vírus para dar esse sacode em nossa sociedade injusta e preconceituosa. A Europa e os Estados Unidos estão mostrando que o bem-estar seletivo não é suficiente para proteger os mais ricos e poderosos.

Hoje, no Brasil, nos EUA e mesmo na Itália vemos o preço que pagamos pelo descrédito pregado contra a ciência e o desmonte de suas estruturas sanitárias. De certo que os Estados Unidos nunca tiveram um sistema de saúde público de assistência, uma vez que o chamado “obamacare” foi desmontado sem ter tido tempo de ser implementado, mas o desmonte veio na forma de redução de recursos para o que havia no setor de saúde pública, como o CDC. O preço que pagam por este desinvestimento é semelhante ao que estamos pagando aqui. Não devemos nos comparar aos Estados Unidos para nos consolarmos de que estamos em uma situação tão ruim como eles, mas é preciso ter consciência que ambos os países foram pegos desprevenidos pela pandemia. E este despreparo não foi por acaso, mas uma consequência previsível do desinvestimento imposto ao setor público. E é pior: hoje assistimos autoridades econômicas de nosso país tentando se aproveitar da catástrofe que vai se desenhando para tentar implementar suas propostas de reformas como se estas fossem algum tipo de resposta possível para a crise sanitária. Não é. O abandono e a minimização das políticas de amparo social apenas agravam a situação.

Bioeticistas chineses (Ruipeng Lei e Renzong Qiu) escreveram para o Hasting Center um artigo onde apropriadamente citam uma frase atribuída a Hegel: “We learn from history that we do not learn from history”, mas isso não pode ser um destino. Precisamos apostar em um novo mundo, no renascimento da solidariedade acima da ânsia pelo acúmulo dos bens materiais. O povo brasileiro é solidário e estão demonstrando, com inúmeros exemplos, serem capazes de ser solidários no momento de crise também. 

Ainda não há uma disseminação uniforme desse sentimento de que sem solidariedade a travessia da crise é muito mais penosa. A sociedade começa a se organizar com esse propósito, como, por exemplo, o fez a Central Única das Favelas (Cufa) que publicou uma importante contribuição sobre como pode ser a resposta dos governos para os segmentos mais vulneráveis da nossa sociedade. Mas já passou da hora dos chamados investidores do mercado financeiro, que lucram com a especulação e que não produzem nenhuma gota de álcool gel, compreender que precisam desempenhar um papel importante no apoio financeiro ao combate da pandemia. Devem ser “solidários” espontânea ou compulsoriamente.

 

Referências:


CUFA. Propostas de medidas para reduzir os impactos da pandemia de covid19 nos territórios das favelas brasileiras. Disponível em http://cufa.org.br/noticia.php?n=MjYx

Lei R & Qiu R. Report from China: Ethical Questions on the Response to the Coronavirus. Available from https://www.thehastingscenter.org/report-from-china-ethical-questions-on-the-response-tothe-coronavirus/ Published on: January 31, 2020

 

DOI: 10.13140/RG.2.2.23037.51681

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