comissao etica em pesquisa

 

Texto elaborado por: Marisa Palacios, Simone Maria da Silva,

Luciana Narciso e Maria Claudia Vater do NUBEA/UFRJ, 

Roberta Lemos e Sergio Rego da ENSP/FIOCRUZ

As pesquisas com seres humanos apresentam aspectos éticos que exigem reflexão, avaliação segundo normas vigentes, e de acompanhamento para proteção dos participantes de pesquisa, do pesquisador, da instituição e da própria pesquisa. Pesquisas devem ter regulação ética: a população participante deve ser respeitada, os riscos associados a participação não devem ser excessivos, deve haver benefícios e critérios justos de inclusão de participantes.

A história da humanidade mostra que não basta o bom senso de pesquisadores, nem a boa técnica e dos conselhos que fiscalizam o exercício profissional. Até os dias de hoje diversas pesquisas em vários lugares do mundo, apesar da boa intenção de pesquisadores, sofreram criticas severas e justas por inadequação ética.  Há um conflito de interesse inerente à pesquisa quando o pesquisador está totalmente convencido de que seu projeto é o melhor que ele pode produzir e que salvará muitas vidas. Esse convencimento pode sobrepujar a avaliação dos benefícios e riscos e o respeito aos participantes que devem ser, afinal, o interesse primário da pesquisa. É necessária a existência de comitês independentes para poder desenvolver uma avaliação isenta. E é por isso, que desde 1975 as regulamentações internacionais exigem que toda pesquisa passe por uma avaliação ética independente antes de seu início. 

O sistema de regulação ética no Brasil

Diante destas preocupações, em 1996, foi criado um sistema de avaliação ética das pesquisas que envolvem humanos no Brasil. A resolução CNS no. 196/1996  estabeleceu que cada instituição que realize pesquisa com humanos deve constituir seu Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) que dever funcionar de forma independente, e criou a Comissão Nacional de Ética Pesquisa  (CONEP). A CONEP é uma comissão do  Conselho Nacional de Saúde (CNS), com o objetivo de coordenar o sistema de regulação de ética em pesquisas realizadas no país.

O Conselho Nacional de Saúde é o órgão do controle social da Saúde. Sua composição de 50% de representantes de usuários do sistema de saúde, 25% de trabalhadores da saúde e 25% de gestores e prestadores de serviços tem o objetivo de “manter equilíbrio dos interesses envolvidos”(CNS). O Ministério da Saúde tem seus representantes entre o grupo de gestores. O  CNS através da constituição desse sistema garante que os estudos realizados no Brasil sejam submetidos a avaliação ética por meio de comitês multiprofissionais e com representação de usuários, os CEPs. Atualmente (março/2020), o sistema possui 848 CEPs em atividade. O funcionamento do sistema e a ação de cada um de seus integrantes são orientados por princípios da ética pública como a impessoalidade, transparência, razoabilidade, proporcionalidade e eficiência. A avaliação ética é feita seguindo os princípios emanados de nossa regulamentação sobre o tema, harmonizada com a regulamentação internacional, obedecendo os prazos estabelecidos em norma operacional (CNS  001/2013).  Além disto, cabe à CONEP realizar a adequação e a atualização das normativas que direcionam a pesquisa no país, e ainda, registrar, supervisionar o funcionamento e cancelar o registro dos Comitês de Ética em Pesquisa existentes no território nacional.  

Durante epidemia o sistema de regulação ética para pesquisas é crucial

As epidemias fazem parte da realidade de um mundo cada vez mais globalizado. Países como China, Itália, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos, Equador e Brasil vem se assemelhando no despreparo frente a um vírus que como um trator desgovernado pega de surpresa quem estiver em sua frente.  

O contexto da pandemia, de medo , de escassez de opções terapêuticas, do risco grande de quebra do sistema de saúde, deixa a população ainda mais vulnerável. O momento de crise é também um momento de oportunidades e para alguns setores pode representar um lucro extraordinário. Assim, o conflito de interesses precisa ser adequadamente manejado, compreendendo que há interesses econômicos poderosos envolvidos nas pesquisas.  Além da justa necessidade de urgência em encontrar soluções para salvar vidas esses são fatores que associados podem colocar as vidas em risco. Além disso, grande parte das pesquisas, além de buscar solução individual para resolução do problema, busca alimentar as políticas de saúde pública dos países mais afetados pela pandemia. É assim que o papel que cumpre o sistema de regulação ganha mais relevância. 

Essa epidemia com sua curva exponencial gera a necessidade de uma ação coordenada imediata com rápida definição de respostas e tomada de decisão fugindo das ações comumente realizadas. A urgência de pesquisas de todas as origens, para dar respostas ou evidências para embasar decisões políticas, leva a uma corrida sem precedentes ao sistema de regulação.  Nesse contexto a CONEP tem demonstrado que o modelo de regulação baseado no controle social pode se comprometer com rapidez nas avaliações sem perder de vista a garantia da eticidade das pesquisas, como exige o enfrentamento da pandemia.

O PL não contribui para o enfrentamento da epidemia

A notícia de que o Projeto de Lei que pretende regulamentar a pesquisa clínica, PL 7082/2017 (da Câmara dos Deputados) voltou a tramitar em regime de urgência, por um requerimento de 30/03/2020, nos coloca em alerta. O PL vem tramitando desde 2015 (PL200/15 do Senado), foi uma proposta da Interfarma que defende, legitimamente, os interesses desse setor industrial. Com o processo de tramitação várias emendas foram aprovadas num processo de aproximação com a regulamentação atual do sistema do CNS. Uma das questões sem acordo foi a que propõe a vinculação do sistema de regulação ética ao Ministério da Saúde.  Isso significa colocar o sistema sob influência principal dos interesses da gestão. Essa mudança transforma inteiramente o sistema atual, alterando o princípio fundamental no qual se assenta a avaliação ética por Comitê de Ética em Pesquisa: sua independência.

Desde 1975 na Declaração de Helsinque e em todas as normas éticas para pesquisas em humanos nacionais e internacionais, há a exigência de avaliação ética por comitê independente. E a preocupação é justamente a possibilidade de conflito de interesse.

A avaliação ética precisa ser livre de interesses imediatos o que só é possível mantendo à distância os interesses dos pesquisadores e patrocinadores. A composição multidisciplinar exerce um efeito importante evitando que normas de conduta internas a uma profissão possam enviesar a compreensão dos interesses do participante e comprometer uma avaliação isenta da pesquisa. A participação de representante de usuários completa a composição dos CEPs. Sua função é poder apresentar o ponto de vista dos usuários que sempre deve ser levado em consideração na tomada de decisão de aprovar um projeto de pesquisa. Admitir que todos os humanos têm dignidade, que todo humano deve ser considerado um fim em si mesmo, impõe que aqueles que vão se submeter a pesquisa sejam ouvidos desde a proposição da pesquisa. Essa é a função do representante de usuários no CEP.

Garantir a independência do sistema CEP-CONEP é fundamental. O fato do CNS ser quem, em última instância, dirige o sistema garante maior independência ao sistema, por sua composição diversificada e por ser o órgão de controle social sobre as ações e políticas do poder executivo no âmbito da saúde. Dar para o poder executivo, sem mediação, o poder exclusivo de julgar que pesquisas serão realizadas, ao sabor de quem ocupe esse poder, parece ser uma centralização excessiva e uma perda de liberdade para pesquisadores.

Ademais, o impulso para, em meio à epidemia da COVID-19, ser aprovado em regime de urgência, só gerará o efeito de desestruturar o sistema existente e demandará tempo para por outro em seu lugar. A COVID-19 está aqui e agora, precisando de toda a capacidade de pesquisa de nossos pesquisadores para melhor atravessarmos esse momento tão difícil.  

As universidades têm respondido positivamente ao desafio de produzir pesquisas relevantes para este momento de crise. A CONEP a seu turno tem também respondido com a agilidade que o momento demanda, sem abrir mão de garantir que os princípios fundamentais que devem presidir a pesquisa com humanos sejam observados.

Por último, devemos considerar que são as instituições públicas de ensino e pesquisa o lócus da realização de quase a totalidade da pesquisa no país.  Isto exige que o debate sobre a segurança e a regulação ética das pesquisas realizadas seja um tema pautado pois urge o seu posicionamento.

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