Boletim nº 13 (setembro de 2025)
SUMÁRIO
A RENDIÇÃO DA EUROPA E A RESISTÊNCIA DO BRASIL
A CÚPULA DO ALASCA E A RECONFIGURAÇÃO DO PODER MUNDIAL
A COMPETIÇÃO ENTRE CHINA E EUA PELA ECONOMIA DIGITAL
TAIWAN: O PONTO FOCAL DA RELAÇÃO ENTRE EUA E CHINA
TRUMP X KENNEDY JR: AS DIVISÕES DO GOVERNO REPUBLICANO
O MASSACRE EM GAZA E AS NOVAS DIVISÕES EM ISRAEL
POR QUE PAÍSES EUROPEUS SE AFASTAM DE ISRAEL
FRAGILIDADE FINANCEIRA DA ARGENTINA DE MILEI
A DERROTA DA ESQUERDA NAS ELEIÇÕES BOLIVIANAS
O DIA EM QUE O BRILHO DA CHINA ECLIPSOU O OCIDENTE
A RENDIÇÃO DA EUROPA E A RESISTÊNCIA DO BRASIL
Por José Luís Fiori
Depois da retirada de Donald Trump da 51ª. Cúpula do G7, em Kananaskis, no Canadá, e da aceitação europeia das exigências americanas na 38ª. Cúpula da OTAN, realizada na cidade Haia, na Holanda, o presidente norte-americano submeteu a Europa a mais um espetáculo vexaminoso no seu resort de Turnberry, na Escócia.
Durante um fim de semana de férias, e entre uma partida e outra de golfe, recebeu em sua casa particular, para uma cerimônia de “beija-mão” quase medieval, o primeiro-ministro britânico, Sir Keir Starmer, ao qual negou o pedido de revisão da tarifa de 50% que o próprio Trump havia imposta às exportações inglesas de aço e o alumínio ingleses para o mercado norte-americano. Logo em seguida, recebeu a Sra. Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, e lhe impôs um “acordo comercial” escorchante, um verdadeiro “tratado infame”, do tipo que os europeus costumavam impor aos asiáticos e à China, em particular, no século XIX.
Pelo novo “acordo”, a União Europeia comprometeu-se a “zerar” as tarifas alfandegárias de todas as importações industriais dos EUA, e aceitou a imposição de uma tarifa linear de 15% sobre todas suas exportações para o mercado norte-americano. Além disso, a União Europeia comprometeu-se a comprar U$ 750 bilhões de gás liquefeito, petróleo e energia nuclear produzidos nos EUA, aceitando investir U$ 600 bilhões, até 2028, em setores estratégicos da economia estadunidense. Por fim, jurou não taxar as redes sociais americanas, um tema sobre o qual Donald Trump vem insistindo e ameaçando constantemente. E a clemência pedida pelos europeus, com relação à tarifa de 50% sobre seu aço e alumínio, foi jogada para algum momento indeterminado do futuro.
Assim, se somarmos os termos desse “acordo comercial” ao compromisso assumido na reunião de Haia pelos países europeus da OTAN – de gastar 5% de seus orçamentos anuais em defesa, e a maior parte deste valor na compra de armamentos norte-americanos –, podemos concluir, sem nenhum exagero, que a Europa acabou de aceitar e assumir plenamente, em 2025, sua condição de “vassala militar” dos EUA, agregando-lhe sua nova condição de dominium econômico norte-americano – mesma posição ocupada, no passado, por Canadá, Austrália e Nova Zelândia com relação ao antigo Império Britânico.
De forma paralela, e um pouco antes do seu passeio na Escócia, Donald Trump anunciou sua decisão, absolutamente unilateral, de impor uma tarifa linear de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os EUA. Uma sanção econômica sem nenhum motivo comercial, porque o Brasil é deficitário no comércio com os EUA há muitos anos, como todos sabem e já disseram reiteradas vezes. Por outro lado, o motivo alegado por Trump – em defesa do ex-presidente brasileiro que foi condenado pela tentativa de um golpe de Estado com assassinato de seus adversários – também parece ser muito artificial e forçado, uma vez que a figura desse ex-presidente é inteiramente irrelevante do ponto de vista do projeto global de Trump. Neste sentido, tudo indica que a verdadeira motivação do ataque americano contra o Brasil seja uma retaliação contra a política externa do governo brasileiro de aproximação com a China e de liderança dentro do grupo do BRICS. E talvez, ainda mais de retaliação contra a posição brasileira de denúncia do genocídio da população palestina da Faixa de Gaza, por parte do governo de Israel.
Chama atenção, neste sentido, que o anúncio de Trump da sanção contra o Brasil tenha sido feito no mesmo momento em que o presidente norte-americano recebia na Casa Branca o primeiro- ministro Benjamin Netanyahu para reafirmar seu apoio incondicional à política israelense de extermínio e/ou expulsão dos palestinos da Faixa de Gaza. Ocasião em que o primeiro-ministro de Israel (acusado de “genocídio” no Tribunal Internacional de Haia) fez a patética proposta de concessão do Prêmio Nobel da Paz ao seu principal aliado e financiador deste mesmo massacre que vem sendo denunciado permanentemente pelo presidente brasileiro.
Reforçando esta hipótese, aliás, também chama atenção o fato de que uma semana antes do anúncio da visita de Netanyahu a Washington e do “tarifaço punitivo” de Donald Trump contra o Brasil, a revista The Economist tivesse publicado uma matéria – na edição do dia 29 de junho – acusando a política externa do Governo Lula de ser “incoerente” e “hostil ao Ocidente”, exatamente por sua denúncia e condenação do genocídio de Gaza e do ataque militar de Israel contra o Irã. Segundo a revista inglesa, essas posições teriam colocado o Brasil numa condição de isolamento dentro do “mundo ocidental” – ou seja, para bom entendedor, de “isolamento” com relação a Israel, à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos.
Quando se leem os acontecimentos desta forma, entende-se melhor a facilidade com que o The Economist mudou sua posição frente ao Brasil, ao lado de vários outros jornais europeus e norte- americanos, incluindo o The New York Times. Estes passaram a elogiar a resposta do governo brasileiro frente ao “tarifaço” de Trump,
por sua corajosa resistência ao assédio e às ameaças comerciais norte-americanas, reconhecendo a liderança internacional do presidente Lula e sua altivez na defesa da soberania e da democracia brasileiras. O jornal espanhol El País chegou a classificar Lula como o único governante de um país ocidental que foi capaz de resistir aos delírios imperiais de Trump, ao declarar em alto e bom som, que “Trump havia sido eleito para governar os EUA, e não para ser o imperador do mundo”. E a própria The Economist, na edição seguinte, em 28 de agosto, afirmou na sua matéria de capa que “o Brasil estava oferecendo aos Estados Unidos uma lição de maturidade democrática”.1 Ou seja, tudo parece confirmar que o verdadeiro motivo do ataque ao Brasil não foi o comércio nem a defesa da “liberdade de expressão”, mas sua política externa ao lado da China e do BRICS, e em particular, contra o genocídio praticado pelo governo israelense de Netanyahu.
Os EUA são a maior potência econômica, financeira e militar do mundo e, portanto, sua relação com o Brasil, deste ponto de vista, será assimétrica ainda por muito tempo. Isso limita a possibilidade de o Brasil retaliar economicamente os EUA, como fizeram os chineses, obrigando os norte-americanos a recuarem depois do seu ataque inicial. Mesmo assim o presidente brasileiro não se deixou achincalhar, como aconteceu com os líderes europeus, e se propôs a negociar, colocando-se aberto ao diálogo, mas sem se humilhar frente ao presidente americano. Mais do que isso, na sua condição de atual presidente do grupo dos BRICS, vem promovendo uma mobilização de suas principais lideranças, buscando coordenar uma resposta coletiva que impeça que Trump separe seus Estados-membros, jogando uns contra os outros e negociando com cada um em separado, usufruindo de sua assimetria de poder.
Por fim, cabe observar que, neste momento, após a rendição incondicional aos EUA, vários governos europeus enfrentam uma impopularidade crescente, enquanto a economia europeia afunda cada vez mais na recessão ou estagnação prolongada, e a economia brasileira segue crescendo. E em agosto, um mês depois do tarifaço de Trump, o Brasil viu suas exportações para os EUA terem uma queda natural de 18,5%, mas o comércio exterior brasileiro, como um todo, registrou um superávit de U$ 6,1 bilhões – um aumento de 35,8% em relação ao mesmo período de 2024 – e as próprias exportações cresceram 3,9%, totalizando U$ 29,86 bilhões. Uma extraordinária vitória da coragem e altivez frente a covardia e humilhação das lideranças europeias atuais, talvez a geração mais medíocre da história política da Europa desde a II Guerra Mundial.
Por outro lado, no campo diplomático e geopolítico, a diplomacia brasileira (e o presidente Lula, em particular) obtiveram uma grande vitória ao promover a reunião extraordinária dos países- membros do BRICS do dia 8 de setembro, com a participação virtual dos líderes de China, Rússia, África do Sul, Egito, Irã, e Indonésia, além do chanceler da Índia, do Vice-Ministro de Relações Exteriores de Etiópia e do príncipe herdeiro dos Emirados Árabes Unidos. Ocasião em que reafirmaram sua crítica conjunta ao tarifaço de Trump e a todo tipo de sanções econômicas unilaterais aplicadas pelos EUA e pela União Europeia contra os demais países e economias do sistema internacional. Mais um ponto a favor da resistência e da diplomacia brasileira.
1 Braun, J. “O que o Brasil pode ensinar à América”, The Economist, 28 ago. 2025.
A CÚPULA DO ALASCA E A RECONFIGURAÇÃO DO PODER MUNDIAL
Por Andrés Ferrari Haines
Nos últimos meses, diversas reuniões entre grandes líderes mundiais apontaram para mudanças na ordem global. Em especial, o encontro entre Donald Trump e Vladimir Putin no Alasca, onde ambos reafirmaram seu compromisso para resolver o conflito na Ucrânia.
Os termos avançados se aproximam do que Moscou insiste serem as causas subjacentes do conflito: a Ucrânia abandonando suas ambições de ingressar na OTAN e aceitando a Crimeia e outras regiões ocupadas como parte da Rússia. Além disso, as negociações pareciam estar alinhadas com as demandas de Putin por uma paz sustentável — e não uma trégua temporária como Zelensky deseja
— como pré-requisito para o início das negociações.
Trump afirmou que Zelensky "pode encerrar a guerra com a Rússia quase imediatamente, se assim o desejar, ou pode continuar lutando" e descartou o envio de tropas estadunidenses. O Secretário de Estado Marco Rubio afirmou que "Esta não é a nossa guerra. Os Estados Unidos não estão em guerra. A Ucrânia está em guerra."
O contexto anterior bem como o posterior proporcionam uma melhor compreensão do significado do encontro.
Putin, “isolado internacionalmente”
Embora líderes ocidentais insistam que a "comunidade internacional" isolou a Rússia, Putin continua a intensificar suas relações com países abertamente em desacordo com os Estados Unidos. Nos círculos ocidentais, discute-se se isso se trata de uma cooperação entre "aliados naturais" ou não. Mas o receio de que eles possam formar uma frente unida é suficiente para designar China, Rússia, Irã e Coreia do Norte pela sigla CRINK.
A Rússia esteve presente no Brasil em julho, na reunião do BRICS+, grupo que, com dez países-membros e dez associados, representa 44% do PIB global e 56% da população. O encontro, que ocorreu apesar das ameaças de Trump e contou com a participação simbólica de Cuba, discutiu o comércio em suas próprias moedas e o avanço da desdolarização global — questões que irritam profundamente os EUA.
A Rússia também participou em setembro da 25ª Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai em Tianjin que contou com a
presença de líderes de mais de 20 países e chefes de 10 organizações internacionais. Segundo o líder do país anfitrião, Xi Jinping, a reunião demonstrou ao mundo a dinâmica de um bloco que deve se opor "à mentalidade da Guerra Fria de confronto em blocos e promover um mundo multipolar, justo e ordenado".
Um momento significativo durante a cúpula, considerando anos de tensões fronteiriças, foi o encontro de Xi com seu homólogo indiano, Narendra Modi, no qual ambos afirmaram que Índia e China são "parceiros, não rivais" e que as disputas devem ser resolvidas por meio da diplomacia, sem permitir que as diferenças limitem o alcance do relacionamento. Por sua vez, o Ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, defendeu a retomada do formato Rússia- Índia-China (RIC).
Dias depois, Xi Jinping liderou um grande desfile militar — exibindo pela primeira vez o poder nuclear terrestre, marítimo e aéreo da China — na Praça da Paz Celestial para comemorar o fim da Segunda Guerra Mundial, ao lado do presidente russo Vladimir Putin e do presidente norte-coreano Kim Jong Un.
Zelensky, a voz da “russofobia”
Essa imagem levou Trump a declarar: "Por favor, transmitam minhas mais calorosas saudações a Vladimir Putin e Kim Jong-Un enquanto conspiram contra os Estados Unidos da América". Essas palavras geram dúvidas sobre a posição do Trump, considerando que no Alasca ele afirmou que a questão "mais significativa" continua sem solução, sem especificar mais nada. Essa postura ambígua ecoa a de Biden.
É significativo que o Hudson Institute, um think tank de centro- direita próximo a Trump e que afirma “promover a liderança estadunidense para um futuro seguro, livre e próspero”, tenha publicado um artigo em agosto delineando uma série de novas sanções à Rússia se Putin “continuar sua agressão e se recusar a implementar um cessar-fogo imediato e abrangente” — o que se encaixa na visão da Ucrânia.
Entre elas estão a extensão do bloqueio financeiro a bancos e as sanções comerciais de energia impostas à Rússia e aos países com os quais ela mantém relações comerciais — incluindo Índia e China. Mas a proposta mais fundamental é confiscar os mais de US$ 5 bilhões em ativos do governo russo atualmente congelados em bancos estadunidenses para que a Ucrânia os use na compra de armas de empresas dos Estados Unidos. Embora não seja declarado diretamente que o objetivo é derrubar o governo de Putin, o autor
afirma que as medidas visam torná-lo impopular na Rússia a ponto de forçá-lo a interromper a guerra.
Essa abordagem é consistente com a de Zelensky, que defende abertamente a desestabilização política da Rússia, afirmando que somente uma mudança de regime em Moscou poderia garantir a "segurança" da Europa e evitar futuros conflitos no continente. O primeiro passo para isso, segundo Zelensky, é aprofundar o confisco de ativos financeiros russos.
Essa visão consiste em transformar Putin em um "ditador" sem amplo apoio popular — descartando a validade democrática de sua recente reeleição — e ignorando as preocupações russas sobre a autoridade legal de Zelensky para assinar acordos vinculativos, visto que seu mandato presidencial expirou em 2024, mas ele não convocou novas eleições, alegando lei marcial. Para Moscou, Zelensky é "ilegítimo", e a autoridade legal na Ucrânia reside no parlamento.
Trump, líder da “ordem baseada em regras”
Zelensky acaba expressando aos líderes europeus que, como Kaja Kallas, da Estônia, defendem abertamente a fragmentação da Rússia em uma série de "microestados", o que Biden já havia sugerido como um objetivo do conflito ucraniano e que alguns think tanks estadunidenses haviam mapeado secretamente.
Mas esse objetivo, que está atualmente levando à ruína econômica da Europa, é celebrado por seus governantes — como evidenciado pela comemoração da destruição de outro grande oleoduto que abastecia a Europa com petróleo vital, após o gasoduto Nord Stream em setembro de 2022, e pelo fechamento unilateral por Kiev do gasoduto da Irmandade Muçulmana que abastecia o resto da Europa no final de 2024, quando Ucrania decidiu não renovar um contrato de trânsito de décadas com a Rússia. A UE também ignorou o ataque ucraniano aos gasodutos Turk Stream, que conectam o gás russo ao sul da Europa.
Os graves impactos econômicos negativos sentidos pela UE parecem validar a visão daqueles que afirmam que as elites europeias não se importam mais com os interesses de seus cidadãos. Para Fyodor Lukyanov, editor-chefe da revista Russia in Global Affairs, a Europa Ocidental percebeu a extensão de sua dependência estratégica, política e econômica dos Estados Unidos. Ele argumenta que suas decisões seguem os desejos dos EUA, mesmo em questões que afetam negativamente seus próprios interesses, consolidando uma "disposição entre os líderes da UE ao servilismo".
A fotografia divulgada pela Casa Branca da reunião no Salão Oval logo após o encontro de Trump no Alasca com Zelensky e altos líderes europeus pareceu confirmar as palavras do Secretário-Geral da OTAN, Mark Rutte, de que Trump se tornou “um 'papai' para a Europa: uma figura a ser apaziguada com sorrisos, homenagens e bajulação”.
A imagem pública de domínio e humilhação de Trump sobre a UE levanta questões sobre a independência europeia em suas decisões.
Mas nada que poderia ter surpreendido Putin. Como lembrou Pepe Escobar, o líder russo já havia previsto isso há mais de seis meses: “Garanto que Trump, com seu caráter e perseverança, restaurará rapidamente a ordem. E todos, vocês verão, logo cairão aos pés do mestre e abanarão o rabo suavemente.”
A SITUAÇÃO ATUAL DA COMPETIÇÃO ARMAMENTISTA ENTRE EUA E RÚSSIA
Por Danilo Rodriguez, Daniel Barreiros
Questionada sobre qual seria a principal potência militar atual, a maioria das pessoas responderia "Estados Unidos" — conclusão que encontra respaldo em dados objetivos. A classificação global de poder de fogo de 2025, que analisa mais de 60 fatores quantitativos e qualitativos, posiciona os Estados Unidos no topo do ranking, seguidos por Rússia e China1. O orçamento militar americano corrobora essa liderança: segundo o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI), os gastos militares dos EUA alcançaram quase US$ 1 trilhão em 2024, superando a soma dos cinco países seguintes no ranking2. Em perspectiva comparativa, o orçamento militar russo equivaleu a aproximadamente 15% do americano no mesmo período, posicionando a Rússia em terceiro lugar entre os maiores gastadores militares globais. A análise proporcional ao PIB revela dinâmicas distintas: enquanto Washington manteve seus gastos estáveis em cerca de 3,5% do PIB, Moscou intensificou significativamente seus dispêndios militares — de uma média de 4,25% antes do conflito ucraniano para 7% em 2024. Além do investimento financeiro, o efetivo militar e o arsenal disponível constituem indicadores complementares fundamentais para mensurar o poderio bélico nacional.
O efetivo militar ativo dos dois países apresenta números similares: os Estados Unidos mantêm aproximadamente 1.328.000 pessoas na ativa, superando a Rússia por cerca de 8.000 militares. Contudo, o cenário se inverte ao analisar as reservas: a Rússia dispõe de 2 milhões de reservistas, contra menos de 800.000 americanos. Somado ao maior potencial de mobilização e às 250.000 pessoas em forças paramilitares, a Rússia demonstra clara superioridade em capacidade de mobilização de pessoal. No domínio aéreo, os Estados Unidos exercem supremacia incontestável com mais de 13.000 aeronaves, comparado às 4.300 russas. No poder terrestre, a vantagem norte-americana restringe-se aos veículos blindados, enquanto a Rússia supera em tanques e sistemas de artilharia, conferindo-lhe superioridade geral neste domínio.
1 https://www.globalfirepower.com/countries-comparison-detail.php?country1=russia&country2=united- states-of-america
2 https://milex.sipri.org/sipri
O poder naval reflete estratégias fundamentalmente distintas: a doutrina
norte-americana prioriza a projeção global de poder e o controle de rotas marítimas internacionais, estruturando sua frota em torno de grupos de combate centrados em porta-aviões, protegidos por destroyers, cruzadores e submarinos. Em contraste, a estratégia russa enfoca a negação de acesso às suas águas costeiras, empregando fragatas, corvetas, submarinos e guerra de minas como elementos dissuasórios. Essa diferenciação doutrinária resulta numa configuração em que os Estados Unidos detêm superioridade ofensiva, enquanto a Rússia privilegia capacidades defensivas.
Contudo, como observou o ex-General Omar Bradley: "Amadores falam de estratégia. Profissionais falam de logística". Além dos quantitativos militares apresentados, torna-se fundamental analisar a capacidade de mobilização industrial para conflitos prolongados. Steve Jermy, Comodoro aposentado da Marinha Real Britânica, em artigo intitulado " Right now NATO could not win a war with Russia"1, destaca uma assimetria crítica: diferentemente da Rússia, nenhum país da OTAN encontra-se mobilizado industrialmente para a guerra. Essa avaliação encontra respaldo em pronunciamento do General Christopher G. Cavoli, ex- Comandante Supremo Aliado da OTAN na Europa (SACEUR), ao Senado americano em 2025, no qual enfatizou o significativo aumento da capacidade produtiva bélica russa, preparando Moscou para conflitos militares prolongados2. O Royal United Services Institute (RUSI) já havia alertado em 2022 para o retorno da centralidade da produção industrial militar e a erosão da capacidade ocidental de sustentar conflitos de longa duração3. Em atualização de 2025, o RUSI confirmou a clara assimetria favorável à Rússia na produção industrial militar4. Jermy questiona não apenas a capacidade ocidental de mobilização em tempo hábil e na escala necessária, mas também ressalta constrangimentos fiscais significativos: apenas a Alemanha, entre os principais aliados, mantém uma relação dívida/PIB inferior a 100%, limitando a margem de manobra financeira para expansão da produção bélica.
1 https://responsiblestatecraft.org/nato-war-with-russia/
2 https://www.armed-services.senate.gov/imo/media/doc/general_cavoli_opening_statements.pdf
3 https://www.rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/return-industrial-warfare
4https://www.rusi.org/explore-our-research/publications/occasional-papers/winning-industrial-war-comparing-russia-europe-and-ukraine-2022-24
O segundo fator crítico refere-se ao teatro operacional. Em um eventual confronto entre Rússia e OTAN no continente europeu, a aliança atlântica enfrentaria vulnerabilidades duplas: os Estados Unidos dependeriam predominantemente do transporte marítimo para desembarcar tropas e equipamentos, enquanto a Europa mantém sua dependência energética de importações de petróleo e gás via rotas oceânicas. Em ambos os cenários, os submarinos e sistemas de guerra naval de minas russos ocupariam posições estratégicas para interromper as cadeias logísticas essenciais1.
A vulnerabilidade marítima é agravada pelo desenvolvimento de mísseis hipersônicos russos, particularmente o Kinzhal e o Oreshnik, que expõem a infraestrutura ocidental e comprometem os sistemas de defesa existentes. Estes projéteis operam a velocidades superiores a Mach 5, dificultando significativamente sua detecção, rastreamento e interceptação2. Diferentemente dos mísseis convencionais de trajetória parabólica previsível, os hipersônicos possuem capacidade de manobra durante o voo, tornando as defesas atuais inadequadas.
Adicionalmente, as forças da OTAN apresentariam heterogeneidade operacional, com níveis díspares de capacitação e treinamento entre os países membros. Jermy ressalta que as doutrinas militares ocidentais permanecem orientadas para conflitos pré-era dos drones, contrastando com a experiência russa: "o Exército Russo possui quase três anos de experiência e é indiscutivelmente o mais experiente em combate do mundo"3. O analista identifica ainda deficiências estruturais na cadeia de comando da OTAN e limitações na capacidade organizacional de formular e implementar estratégias coesas.
As capacidades militares russas revelam uma potência que conseguiu transformar suas limitações históricas em vantagens estratégicas adaptadas ao contexto geopolítico atual. Moscou desenvolveu um modelo de poder militar fundamentado na mobilização industrial sustentada, superioridade em pessoal de reserva e doutrinas defensivas otimizadas para negação de acesso, contrastando com a abordagem ocidental de projeção global de força. A experiência adquirida no conflito ucraniano, combinada ao desenvolvimento de capacidades disruptivas como mísseis hipersônicos, posiciona a Rússia como uma potência militar tecnologicamente avançada e operacionalmente experiente. Prospectivamente, a Rússia deverá consolidar sua posição como principal desafiador do sistema de segurança euro-atlântico, explorando as vulnerabilidades logísticas e industriais ocidentais identificadas. A capacidade russa de sustentar conflitos prolongados, aliada à crescente sofisticação de suas capacidades antissubmarinas e de guerra eletrônica, sugere que Moscou emergirá como um ator militar ainda mais formidável na próxima década. Para os formuladores de política, isso implica reconhecer que a Rússia não apenas recuperou sua relevância militar global, mas potencialmente redefiniu os parâmetros de competição militar no século XXI, privilegiando a preparação industrial e a experiência operacional sobre os gastos militares absolutos.
1 Em entrevista concedida em junho de 2025, no minuto 28, o ex-assessor do Secretário de Defesa no governo Trump (2017-2021), Coronel aposentado Douglas Macgregor reforça esse ponto: “O tempo em que se podia mover centenas de milhares de tropas pelo Atlântico acabou. Nós nunca chegaríamos até lá. A tecnologia não permitiria. Todos os transportadores de tropas e porta-aviões carregando homens e equipamentos seriam alvejados do céu ou afundados. Nós vivemos em uma era de tecnologia guiada precisa”. https://www.youtube.com/watch?v=OsjQZHUvg-M.
2 https://www.bbc.com/news/articles/cgeqj1q8gj4o
3 “Whereas the Russian Army has close to three years experience now, and is unarguably the world's most battle-hardened”.
A COMPETIÇÃO ENTRE CHINA E EUA PELA ECONOMIA DIGITAL
Por Leonardo Castro Castro
Em movimento considerado incomum pelos analistas e pelo próprio mercado de tecnologia, o governo Trump anunciou, em 22 de agosto de 2025, a aquisição de uma participação de 9,9% das ações da fabricante de semicondutores Intel. A concretização do negócio foi confirmada no mesmo dia um comunicado da própria Intel.
O acordo, no valor de US$ 8,9 bilhões, mobilizou fundos que já haviam sido destinados, embora não ainda transferidos, à empresa pela lei CHIPS (Creating Helpful Incentives to Produce Semiconductors Act), criada na gestão Biden. O pacote de financiamento incluiu US$ 5,7 bilhões da lei CHIPS e US$ 3,2 bilhões do programa “Secure Enclave”, de desenvolvimento de semicondutores de alta segurança para fins governamentais e militares.
Há uma mudança notável de abordagem entre as iniciativas do governo Biden, que condicionava os recursos ao cumprimento de metas de produção, e o acordo proposto por Trump, que aloca os recursos em troca da participação acionária, mas há um nexo importante entre ambas – o objetivo de conter o avanço da China na produção de semicondutores e no desenvolvimento da inteligência artificial. Além de incentivos à relocalização da produção de semicondutores, a lei CHIPS impôs barreiras severas à transferência de tecnologia avançada para a China por um período de dez anos.
Também com objetivo tácito de bloquear o desenvolvimento chinês, o governo americano havia proposto, em março de 2022, a iniciativa “Chip 4” (Chip 4 Alliance), para fomentar a cooperação entre Estados Unidos, Taiwan, Coreia do Sul e Japão na produção de semicondutores. A aliança não chegou a ser formalizada, devido a desconfianças e interesses divergentes. Empresas de Taiwan e Coreia do Sul, como por exemplo a Taiwan Semiconductor Manufacturing (TSMC), líder global na produção de chips avançados, possuem fábricas na China e poderiam ser prejudicadas. A estratégia comercial agressiva do segundo governo Trump confirmou as desconfianças e implodiu as bases da Aliança ao ameaçar a TSMC com tarifas de até 100 por cento caso não se dispusesse a construir fábricas nos EUA.
O governo Trump 2 inaugurou uso ostensivo de tarifas comerciais como instrumento de pressão contra países e empresas
para obtenção de concessões e vantagens e não se furta a usar esse expediente contra empresas dos próprios EUA. Ameaçou a Apple com tarifas de 25 por cento caso não passasse a produzir iPhones em território americano. A própria Intel, pouco antes do acordo mencionado, foi assediada por Trump, que exigiu a renúncia do CEO da empresa, acusado de conflito de interesse por possuir investimentos em empresas chinesas.
A pressão produz efeitos. A TSMC, que havia recebido uma dotação de US$ 6,6 bilhões do CHIPS Act, anunciou um investimento adicional de US$ 100 bilhões nos EUA, além de US$ 65 bilhões já prometidos para a implantação de três fábricas no Arizona. A empresa, pioneira na produção de chips com tecnologias avançadas como os de 2 nanômetros, é líder mundial na produção de semicondutores avançados para inteligência artificial e é a principal fornecedora de chips para as americanas Nvidia e a Apple. Mais do que isso, é a fabricante dos chips Blackwell de última geração da Nvidia, utilizados nas aplicações mais avançadas de inteligência artificial. A Nvidia, por seu lado, já sinalizou que vai apoiar as novas fábricas da TSMC nos EUA.
A estratégia trumpista não se limita a bloquear a ascensão da China, passa também por uma política industrial ousada, baseada em objetivos de segurança nacional mais do que puramente econômicos. Para a imposição de tarifas de importação, Trump apoia-se em uma lei de 1977, International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), que confere ao presidente amplos poderes para regular o comércio internacional e transações financeiras em resposta a emergências que ameacem a segurança nacional, a política externa ou a economia dos EUA. O IEEPA foi invocado inicialmente para impor tarifas ao Canadá, México e China, tendo como justificativa um suposto influxo de imigrantes ilegais e drogas ilícitas, e, em seguida, a diferentes países, devido a déficits e falta de reciprocidade nas relações comerciais. A legalidade da aplicação de tarifas alfandegárias no âmbito do IEEPA vem sendo questionada em tribunais federais e o caso foi encaminhado para a Suprema Corte, que deverá julgá-lo em breve. Trump retrucou que a derrubada das tarifas significaria nada menos que a destruição do país.
Como esperado, o principal contencioso tem sido com a China. Tendo imposto incialmente tarifas de 10 por cento, pouco depois duplicadas, sob acusação de tráfico de fentanil, Trump amplia pouco depois em mais 50 por cento as taxas, sob alegação de falta de reciprocidade comercial. Em abril, os EUA anunciam uma elevação das tarifas para 125 por cento, com isenção em alguns setores, e os chineses reciprocaram. Antes da entrada em vigor dessas taxas, que na verdade inviabilizam o comércio entre os países, foram negociados
adiamentos, com tarifas inferiores e acordos específicos para alguns produtos. Novas rodadas de negociação devem ocorrer até novembro, quando vence o prazo estabelecido para a trégua.
Se algo existe que unifica a visão das elites políticas e econômicas dos EUA, independente de cor partidária, é a percepção de que a China é o adversário a ser batido. De nova “fábrica do mundo”, a China alçou-se em poucas décadas à condição de potência tecnológica, capaz de ameaçar a hegemonia dos EUA em setores de ponta, como redes 5G, veículos elétricos e outros. São diversos os fatores que concorreram para esse resultado: planejamento de longo prazo, investimentos massivos em educação e pesquisa e desenvolvimento, incentivo ao intercâmbio tecnológico e à instalação de empresas estrangeiras, subsídios e apoio a setores estratégicos. Também investiram pesadamente em educação, formando anualmente milhões de engenheiros e profissionais qualificados. Uma política industrial bem ajustada, que fomenta a competição e a inovação na “base” e a concentração em grandes conglomerados no “topo”, contando também com um grande contingente de população conectada a Internet e acesso massivo a dados, permitiu um ultrarrápido desenvolvimento de tecnologias e aplicações de inteligência artificial.
É principalmente esse desenvolvimento que os EUA tentam barrar. Em resposta, o governo chinês tem ampliado massivamente os investimentos. Recentemente, em agosto de 2025, o Conselho de Estado da China formalizou uma estratégia de integração intensiva da inteligência artificial em todos os setores da sociedade e da economia. A estratégia “IA+” se insere em uma trajetória iniciada há anos, que inclui o Plano de Desenvolvimento de Inteligência Artificial de Nova Geração, de 2017, e o programa “Made in China 2025”. As metas são ambiciosas: até 2027, novas infraestruturas, tecnologias e serviços baseados em IA, como terminais inteligentes e agentes virtuais, devem estar presentes em 70% da economia real chinesa, devendo ultrapassar 90% em 2030; até 2026, a China pretende triplicar a produção doméstica de chips de inteligência artificial, impulsionando ainda o desenvolvimento de nanochips e ferramentas industriais de automação inteligente.
Por outro lado, o domínio chinês sobre as chamadas terras raras – minerais essenciais para sistemas eletrônicos, automotivos e de defesa – constitui uma vantagem estratégica considerável. Sendo responsável por mais de 60% da produção global e cerca de 90% do refino desses materiais, a China vem adotando uma política restritiva de exportação de alguns desses elementos, no contexto das negociações tarifárias com o governo americano, interrompendo cadeias de fornecimento e afetando diretamente empresas dos EUA.
O aumento da tensão geopolítica gerado pelas tarifas e pela atitude beligerante do governo Trump, não apenas no comércio, mas também nas relações internacionais em geral, resulta em um cenário de grande incerteza. Os EUA tentam recuperar rapidamente posições perdidas no campo do desenvolvimento industrial para evitar a ultrapassagem da China, que nas condições até há pouco vigentes, seria questão de tempo. Por sua vez, os chineses dobram a aposta na capacidade de inovação da indústria local, apoiada no planejamento e contando com grande volume de investimento governamental.
Ambos os países têm como objetivo imediato reduzir a dependência externa, mas por motivos diferentes: os EUA, para manter a liderança nas tecnologias estratégicas da economia digital; a China essencialmente para contornar as restrições impostas pelo rival norte-americano. O contexto atual é suficientemente turbulento para que não seja recomendável fazer previsões, mas quem apostou contra a China nos últimos tempos perdeu.
TAIWAN: O PONTO FOCAL DA RELAÇÃO ENTRE EUA E CHINA
Por Wagner Souza
Após a vitória sobre o Japão, na Segunda Guerra Sino- Japonesa (conflito parte da Segunda Guerra Mundial), em 1945, a China retoma o controle sobre Taiwan, ilha que havia entregado aos nipônicos após perderem a Primeira Guerra Sino-Japonesa, em 1895. Entre 1945 e 1949 o país vive uma guerra civil, vencida pelos comunistas comandados por Mao Tsé-Tung. Com sua derrota, os nacionalistas do Kuomintang, liderados por Chiang-Kai-shek, fugiram para Taiwan, onde governaram pelas décadas seguintes.
Também conhecida pelo nome dado pelos portugueses no século XVI, Formosa, a ilha tornou-se uma democracia semipresidencialista e um “tigre asiático” capitalista, que se destaca especialmente como líder mundial na fabricação de semicondutores. Sua economia é muito importante para o mundo, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company Limited domina perto de 65% do mercado global de semicondutores, os chips lá fabricados estão presentes em telefones, laptops, relógios, automóveis, dentre outros. Todavia, tem relações diplomáticas com apenas 13 países, além do Vaticano.
Os Estados Unidos mantém a política de “uma só China”, no que é definido como “ambiguidade estratégica”: não reconhecem Taiwan como país independente (e nem qualquer pleito para tal reconhecimento) e apoiam a ideia de uma China unificada, porém sem uma “reunificação forçada” por parte de Pequim. A “ambiguidade” visa manter um compromisso tácito de apoiar Taipé militarmente no caso de uma invasão chinesa. Para a China, Taiwan é uma “província rebelde”, que se deve se reunificar ao país.
Estrategista ligado ao Partido Republicano, membro do recém renomeado “Departamento da Guerra”, Elbridge Colby, lançou, em 2018, a obra "The Strategy of Denial: American Defense in an Age of Great Power Conflict", a qual propõe uma visão específica e focada sobre como os Estados Unidos devem lidar com a ascensão da China, com a questão de Taiwan no centro dessa estratégia.
Colby, portanto, foi o principal arquiteto da Estratégia de Defesa Nacional de 2018, durante o primeiro governo de Donald Trump. Nesta argumenta que a prioridade número um da política de defesa dos EUA deve ser impedir que a China alcance a hegemonia
regional no Indo-Pacífico. Para ele, a anexação de Taiwan seria o primeiro e mais crucial passo da China nesse objetivo.
A previsão e a estratégia de Colby se baseiam no conceito de "dissuasão por negação" (deterrence by denial), que funciona da seguinte forma: a mais importante meta não é punir, mas impedir. Em vez de ameaçar a China com ataques punitivos em seu território em caso de invasão a Taiwan (o que seria uma "dissuasão por punição" e, segundo Colby, não é crível), a estratégia deve focar em negar à China a capacidade de invadir e ocupar a ilha com sucesso.
Para tanto, o foco militar em Taiwan. Isso exige que os EUA e seus aliados (Japão, Coreia do Sul, Austrália, etc.) concentrem seus recursos militares para tornar uma invasão a Taiwan extremamente difícil e custosa. A ideia é construir uma defesa tão robusta que Pequim conclua que uma tentativa de "reunificação" militar resultaria em um fracasso garantido, ou a um custo insustentável.
A formulação de Colby defende a formação de uma coalizão na Ásia, com Taiwan no centro, para resistir a uma possível invasão chinesa. Essa aliança não se baseia tão somente em laços ideológicos, mas em um objetivo compartilhado: impedir o domínio chinês na região.
Em resumo, Colby argumenta que a estratégia americana deve ser a de se preparar para uma guerra com a China por Taiwan, não para lutar, mas para evitar que ela aconteça. Ele vê a inação dos EUA como o principal risco, pois a falta de preparo para um conflito militar com a China sobre Taiwan torna o conflito mais provável. Para ele, Taiwan não é apenas uma questão de valor democrático, mas o "eixo estratégico" que define o futuro da segurança e da prosperidade dos EUA e de seus aliados. É a visão realista, até aqui preponderante na administração republicana. É preciso ter em conta, no entanto, que a distância relativa entre China e EUA se estreitou entre a primeira e a atual segunda gestão Trump, que os chineses vem fazendo maciços investimentos em sua capacidade bélica, com atenção especial à região próxima do Estreito de Taiwan. Uma nova versão da doutrina estratégica dos EUA está para ser lançada e há especulações acerca da possibilidade dos norte- americanos expressarem claramente um comprometimento menor com a defesa dos aliados (incluindo Taiwan) e se concentrarem mais na defesa do seu território, o que significaria uma preocupação menor com a contenção da China e da Rússia, dentro da ideia de “zonas de influência” das Grandes Potências.
Nesta questão, da perspectiva chinesa existe um princípio fundamental: o princípio de uma só China. O país defende que só existe uma China no mundo, e Taiwan é uma parte inalienável da
China desde os tempos antigos. O governo da República Popular da China é o único governo legítimo representante de toda a China. A partir dessa ideia, a China se opõe firmemente a qualquer movimento ou ação que busque a independência formal de Taiwan. Pequim vê essas atividades como uma violação grave de sua soberania e integridade territorial.
Os chineses costumam argumentar que almejam alcançar a reunificação com Taiwan através de meios pacíficos. A "fórmula um país, dois sistemas" - aplicada em Hong Kong e Macau - é frequentemente mencionada como um modelo potencial para Taiwan, onde a ilha manteria seu próprio sistema social e econômico. A China considera a questão de Taiwan como um assunto central para seus interesses nacionais fundamentais. Qualquer tentativa de separação ou interferência externa é vista como uma ameaça direta à sua segurança nacional e interesses vitais. Os intercâmbios econômicos e culturais entre os dois lados do Estreito de Taiwan, são vistos e apresentados como pontes para melhor compreensão e aproximação. Pequim insiste que outros países respeitem o princípio de uma só China e não estabeleçam relações diplomáticas formais com Taiwan, nem apoiem sua participação em organizações internacionais como estado soberano. Esta perspectiva baseia-se na visão histórica e jurídica chinesa sobre Taiwan, que é fundamental para entender a abordagem chinesa em relação a esta questão.
A reivindicação de um território que entende como legítima e sua crescente capacidade econômica, tecnológica e bélica vai tornando, contudo, cada vez maior a probabilidade de um conflito com vistas à reunificação. Este cenário não é iminente, mas cada vez mais aparece nos cálculos estratégicos dos atores envolvidos na questão. A nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA, quando divulgada, elucidará se a visão da obra de Colby seguirá como “linha mestra” da política estadunidense para Taiwan ou se haverá mudanças, o que definirá a dinâmica da disputa geopolítica em torno da ilha, definida na chamada de capa de edição de 2021 da revista britânica The Economist como “The most dangerous place on Earth”.
TRUMP, SUA "GUERRA COMERCIAL" E A NOVA GEOECONOMIA DO MUNDO
Por Elias Jabbour
É muito cedo para falarmos em uma nova geografia econômica pós-tarifaço. Isso não significa que ela não esteja em gestação com o tarifaço de Trump apenas como uma continuidade de um processo recente e caracterizado por quatro marcos fundamentais, sendo: 1) a primeira a declaração de um bullying comercial e tecnológico contra a China; 2) a pandemia do Covid-19; 3) o conflito na Ucrânia e 4) o sequestro de centenas de bilhões de ativos em dólares russos.
O que estamos a ver hoje é uma verdadeira jihad com o intuito e resetar as regras e ordem do comércio internacional em prol dos interesses estratégicos dos Estados Unidos, sendo a principal deles a sua reindustrialização. Este conflito dos EUA contra o mundo tem trazido consequências nada pequenas, sendo a aceleração do processo de conglomeração geopolítico do Sul Global sua principal expressão. Como ocorre esse “processo de conglomeração”?
Essa conglomeração tem base objetiva na transformação da República Popular da China na segunda maior economia do mundo. Não somente isso, seu socialismo – emergindo desde 1978 como uma nova formação econômico-social – logrou êxito em transformar a financeirização da economia internacional em algo funcional ao seu projeto nacional, abrigando milhares de cadeias produtivas que se deslocaram dos EUA, Europa e Japão a lugares onde se combinavam baixo custo de produção com mercado interno de proporções gigantescas.
Em quatro décadas tornou-se o centro dinâmico da economia internacional: maior exportadora e importadora de bens e serviços do mundo, sua economia corresponde a 18% do PIB mundial e sua indústria já ultrapassou a casa dos 30% da produção global. Detentora das maiores reservas em moeda estrangeira do mundo, maior credor líquido do mundo e gestora da maior iniciativa em matéria de exportações de valores de uso da história humana, a Iniciativa Cinturão e Rota. Disputa a fronteira da atual revolução técnico-científica em posição de vantagem em vários setores sensíveis. Ao construir uma imensa máquina de previsão (baseada na grande propriedade pública dominante na produção e finança e amparada por inovações tecnológicas disruptivas que levaram ao surgimento de uma economia de projetamento de novo tipo) não somente supera a chamada “incerteza keynesiana” como se
transforma em lócus privilegiado de estabilidade aos seus parceiros comerciais e de investimentos.
A “jihad comercial” de Trump não pode deter uma economia com o grau de solidez da economia chinesa, da mesma forma que não tem como entregar ao mundo as possibilidades que a máquina produtiva e financeira chinesa pode oferecer.
Quem poderia imaginar que as sanções europeias e estadunidenses à Rússia iriam ter como contraparte o fato de o comércio bilateral China-Rússia ter não somente crescido de forma constante na última década. Os intercâmbios intensificaram-se desde o início do conflito. Em 2024, o comércio total atingiu US$ 245 bilhões, mais que o dobro de 2020. Outro dado: quase a totalidade deste comércio é feito em moedas locais, yuan e rublo. Entre a Rússia e a Índia os números surpreendem. O comércio bilateral entre a Índia e a Rússia atingiu um recorde de US$ 68,7 bilhões no ano fiscal de 2024-25, quase 5,8 vezes superior ao comércio pré-pandemia de US$ 10,1 bilhões.
A China continua operando com muita força no continente africano por diversas formas. Por exemplo, os investimentos chineses cresceram de forma geométrica, passando de algo insignificante em 2000 até atingir um estoque de investimentos diretos acima dos US$ 40 bilhões em meados da presente década. No início da presente década a China também havia concedido mais de US$ 170 bilhões em empréstimos e doações às nações africanas, tornando-se o maior credor bilateral do continente. Na América Latina, sua presença é uma crescente em meio à incapacidade dos países do Atlântico Norte em oferecer soluções ao imenso déficit em investimentos em infraestruturas na região. A inauguração do porto de Chancay no Peru, construída pelos chineses com investimentos da ordem de US$ 3 bilhões marca o início do redesenho da geografia econômica da América do Sul que deverá ser completada com as rotas ferroviárias bioceânicas envolvendo o Brasil e a possibilidade de “furar” o monopólio do Canal do Panamá.
Os sinais de uma conglomeração do Sul Global em torno da China é uma resposta objetiva às ocorrências que têm levado o mundo a um estado de caos permanente. À tendência aprofundada de rompimento de cadeias globais de valor, acentua-se a transformação do Sul Global em um grande mercado regional e hub de investimentos chineses em infraestruturas. A União Eurásica se torna uma grande realidade pela via da integração produtiva total entre China e Rússia com a Índia em processo de integração após Modi ter sido literalmente traído por Trump. Neste caso são três grandes blocos nacionais de capitais com amplas possibilidades de integração, elevação da interdependência entre si e maior margem de manobra em relação aos mercados do Norte Global. Não são somente três grandes blocos de capitais, mas também projetos nacionais que buscam seu justo lugar em um mundo multipolar.
Ao Brasil cabe não absorvido pelo processo de conglomeração do Sul Global fora de esquemas geopolíticos próprios, como o fazem a China, Índia, Rússia e mesmo Irã. É momento de nosso país passar por um profundo divã. Ou nos reencontramos conosco mesmos nos próximos anos. Ou teremos mais uma década perdida pela frente e crescimento econômico baseado em preços formados fora do país. Um projeto nacional brasileiro deve ser a grande pauta do momento. Quanto mais tempo perdemos, pior.
TRUMP X KENNEDY JR: AS DIVISÕES DO GOVERNO REPUBLICANO
Por Reinaldo Guimarães
A dinastia Kennedy da Nova Inglaterra, como costumam ser as dinastias, tem gente de todo tipo. Certamente, o seu membro mais estranho é o filho de Robert Kennedy, Procurador Geral dos Estados Unidos assassinado em 1968. Robert F. Kennedy Jr. (71 anos), quarto dos 11 filhos do falecido procurador e atual Secretário (ministro) da Saúde do governo Trump possui uma biografia muito peculiar. Na adolescência e início da vida adulta foi viciado em heroína e outras drogas ilegais, tendo sido preso por porte de heroína aos 29 anos e internado por medida judicial para livrar-se da adição. Seu irmão imediatamente posterior, David Anthony, morreu de uma overdose aos 29 anos, em 1984.
Superada essa fase, o atual secretário abraçou a política e dedicou-se a uma pauta de defesa do meio ambiente, em particular na luta contra a poluição da água consumida pela população. Também defendeu os pescadores do Rio Hudson atacando as indústrias que o poluíam prejudicando as atividades pesqueiras. Pode-se, portanto, afirmar que em todo esse período suas causas estiveram alinhadas ao campo progressista nos termos dos EUA. De resto, a dinastia Kennedy como um todo esteve quase sempre alinhada com o Partido Democrata.
As razões pelas quais esse alinhamento progressista se transformou numa pauta conservadora e de apoio a um governo de corte autocrático não são de fácil entendimento, mas arrisco a interpretá-la lançando mão da categoria “antissistema”. Sua militância em defesa do meio ambiente o levou a acusar as indústrias poluidoras, mas também os governos dos dois partidos e as instâncias regulatórias por eles criadas e administradas.
Atualmente, a categoria “antissistema”, tal qual o antigo rótulo “libertário”, tem sido apropriada pelas correntes políticas de extrema direita e suas reflexões, até certo ponto, assemelham-se àquelas dos luditas no início do século XIX. A chave desse possível parentesco está em situar as instituições que regulam o funcionamento das indústrias poluidoras no mesmo lugar em que os luditas colocavam os teares durante a Revolução Industrial. E, considerando que as instituições reguladoras nos EUA foram criadas por governos dos dois partidos, o combate a elas exigiria um novo tipo de governo, ou melhor, um novo tipo de regime político, que é o que Trump está produzindo. Essa hipótese explicaria porque Kennedy Jr. abandonou
a tradição da dinastia em apoiar o Partido Democrata e foi aos braços de Trump.
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O órgão que gerencia a política ambiental nos EUA é a EPA - Environmental Protection Agency, que não está na esfera da secretaria de Kennedy Jr. Ela é ligada diretamente ao Presidente e a política ambiental é fortemente federalizada, conferindo aos estados grande liberdade de ação. Suspeito que Kennedy Jr. gostaria bastante de tê-la na sua órbita. Mas a ele estão subordinadas duas outras agências que têm grande relevo em sua pauta antissistema. A que trata da saúde pública (CDC – Center of Disease Control and Prevention), estabelece os padrões de vigilância epidemiológica no país e as regras de vacinação. A outra é o FDA (Food and Drug Administration), que aprova, entre outros produtos, os medicamentos que podem ser comercializados nos EUA.
A primeira tem sido alvo grande tensão, pois Kennedy Jr. desenvolveu algumas ideias sobre vacinas que não se sustentam no estado da arte em que a ciência as coloca atualmente. O ponto de vista que defende contra vacinas vem de longe, tendo se iniciado com seu combate ao desinfetante tópico Mertiolate, presente como preventivo de contaminação em algumas vacinas. Isso porque o produto continha mercúrio. Atualmente, a maioria das vacinas, em particular as infantis, não tem o Mertiolate em suas formulações. Mas, na verdade, o problema de Kennedy Jr. com as vacinas parece ser ideológico e vai além. Sua última proibição atingiu uma plataforma tecnológica relevante, que utiliza o RNA mensageiro como uma espécie de vetor vacinal. Essa plataforma apareceu no bojo da pandemia de COVID e é atualmente considerada o padrão-ouro na produção de vacinas (e no futuro também medicamentos).
Ultimamente, as ideias de Kennedy Jr. no CDC têm descambado para a truculência. A principal executiva da agência foi demitida no final de agosto, menos de um mês após ser confirmada pelo Senado e tomar posse. Em sequência, quatro altos funcionários renunciaram em meio a crescentes tensões sobre políticas de vacinação e diretrizes de saúde pública. A demissão decorre de mudanças nos esquemas federais vacinação contra a COVID, retirando o acesso de gestantes e crianças e foi seguida pela demissão de todos os membros do painel consultivo de especialistas em vacinas do CDC, substituídos por consultores que incluem ativistas antivacinas.
A outra manifestação antissistema diz respeito ao FDA. Em resumo, ele afirma que a indústria farmacêutica norte americana domina a agência e esconde da população os riscos de muitos
medicamentos aprovados. É muito provável que haja conflitos de interesse com a indústria no FDA, mas eu penso que as mais importantes sejam questões relacionadas ao mercado norte americano de medicamentos, como por exemplo uma concessão de exclusividade no mercado muito estendida. No meu ponto de vista, essa tensão entre ele e a agência pode ter uma repercussão política considerável em sua trajetória como secretário.
Há uma outra vertente na atuação do Kennedy Jr., que é o seu “ajuste” na maior agência de fomento científico e tecnológico do mundo, que é o NIH (National Institutes of Health). O orçamento do NIH para este ano é de cerca de 45 bilhões de dólares e na proposta orçamentária de 2026 está previsto um corte de 40%. A rigor, a proposta de um enxugamento no NIH foi construída durante o governo Biden e, penso eu, destinava-se a enfrentar o grande salto dado pela China na pesquisa biomédica, em particular no terreno da genômica e suas derivações. Penso que essa dimensão geopolítica permanece nas determinações de Trump para Kennedy Jr., mas a ela vem sendo somada outra, 100% ideológica, voltada para a comunidade de pesquisa biomédica norte americana, cujo objetivo é atingir o que se denomina pensamento woke, amplamente disseminado e que valoriza a ênfase na diversidade étnica, na equidade e na inclusão. Uma espécie de recado à máquina de pesquisa dos EUA tentando alinhá-la à ideologia do novo regime político do país. Daí os profundos cancelamentos de projetos de pesquisa que, ao lado de atingir a atividade dos pesquisadores, chega às universidades onde ela se desenvolve, pois parte importante dos orçamentos universitários advém de overheads embutidos nos projetos apoiados pelo NIH.
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A atuação do governo Trump frente à Big Pharma é um item de grande importância para o futuro de Kennedy Jr. como secretário, muito embora na minha percepção o assunto esteja sendo até agora conduzido diretamente por Trump. As farmacêuticas saíram bem descontentes de uma reunião com Trump em fevereiro. Nela, o presidente anunciou a necessidade de reduzir preços de medicamentos, exigiu a diminuição da influência da Big Pharma no FDA e reiterou sua política industrial de retorno da produção de medicamentos para o território dos EUA. Essa pauta foi atenuada com o acordo EUA/UE anunciado em julho, que reduziu as tarifas sobre medicamentos para 15% e estabeleceu exceções com tarifa praticamente zero para medicamentos genéricos e princípios ativos. Mesmo assim, alguns países da União Europeia rotularam o acordo como uma “rendição”.
No meu ponto de vista, essa relação entre Trump e a Big Pharma tende a ser o principal ponto de atenção e possível fragilização de Kennedy Jr. no posto que ocupa atualmente. Politicamente bem mais importante do que, por exemplo, a reforma do NIH ou as tropelias no CDC. Isso porque as farmacêuticas e também as empresas seguradoras e de prestação direta de serviços em saúde representam cerca de 18% do PIB norte americano e detêm a primazia nas atividades de lobby no país.
O MASSACRE EM GAZA E AS NOVAS DIVISÕES EM ISRAEL
Por Wagner Souza
Após quase dois anos de guerra, a maior parte dos israelenses apoia o objetivo declarado (e irrealista) do governo de "aniquilar" o Hamas e remover a ameaça à segurança de Israel. Para esta maioria, a guerra é vista como uma questão de sobrevivência nacional. O gabinete de Benjamin Netanyahu, no entanto, enfrenta crescente pressão, incluindo aqueles que o acusam de falhar em proteger o país perante os ataques de 7 de outubro de 2023.
Há insatisfação com a forma como a guerra está sendo conduzida. Setores da sociedade, especialmente familiares dos reféns, questionam a estratégia militar e a ausência de um plano claro para o "dia seguinte" em Gaza. Eles argumentam que a prioridade deveria ser o resgate dos reféns, mesmo que isso signifique fazer concessões ao Hamas.
Os protestos na sociedade israelense contra o massacre (genocídio) em Gaza são minoritários. A questão mais relevante é a dos reféns. Grupos de israelenses, especialmente parentes de reféns, têm organizado grandes protestos para exigir o fim da guerra e a libertação dos sequestrados. Suas faixas e slogans muitas vezes questionam a estratégia do governo, afirmando que a continuação da guerra em Gaza coloca em risco a vida de seus parentes e dos soldados israelenses.
A respeito das percepções da sociedade israelense sobre o tema, texto de Jeremy Bowen (14.08.25) no site da BBC, traz dados que indicam forte perda de apoio à forma como a guerra vem sendo conduzida, porém com pouca consideração sobre as mortes e sofrimento dos palestinos: “Pesquisas de opinião realizadas desde que as Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês) retornaram à guerra em Gaza em março, rompendo o último cessar- fogo, sugerem que a grande maioria dos judeus israelenses não se preocupa com o sofrimento palestino em Gaza. Uma amostra registrada nos últimos três dias de julho, pelo Instituto Israelense de Democracia, afirma que 78% dos judeus israelenses, que representam quatro quintos da população, acreditam que, dadas as restrições aos combates, Israel ‘está fazendo esforços substanciais para evitar causar sofrimento desnecessário aos palestinos em Gaza’. Os pesquisadores também escolheram uma pergunta mais pessoal, perguntando se os indivíduos estavam ‘preocupados ou não com os relatos de fome e sofrimento entre a população palestina em Gaza’.
Cerca de 79% dos judeus israelenses entrevistados disseram não estar preocupados. Enquanto isso, 86% da minoria árabe palestina de Israel que responderam à mesma pergunta disseram estar muito ou um pouco preocupados.
O apoio majoritário da população israelense a estas ações brutais de suas Forças Armadas não é recente e nem novidade do conflito atual, espelha a progressiva radicalização da sociedade e crescimento político da extrema-direita e dos setores religiosos. No artigo de 2009 “A visão sagrada de Israel” o Professor José Luis Fiori destacou sobre o tema, em situação com muita semelhança com a atual: “Durante vinte e um dias de bombardeio contínuo, Israel lançou 2500 bombas sobre a Faixa de Gaza – um território de 380 km2 e 1,5 milhão de habitantes – deixando 1300 mortos e 5500 feridos, do lado palestino, e 15 mortos, do lado militar israelita. A infraestrutura do território foi destruída completamente, junto com milhares de casas e centenas de construções civis. E é provável que Israel tenha utilizado bombas de ‘fósforo branco’ – proibidas pela legislação internacional com consequências imprevisíveis, no longo prazo, sobre a população civil, em particular a população infantil.(...) Richard Falk, relator especial da ONU sobre a situação dos Direitos Humanos em Gaza, também declarou que, ‘depois de 18 meses de bloqueio ilegal de alimentos, remédios e combustível, Israel cometeu crimes de guerra, e contra a humanidade, na sua última ofensiva contra os territórios palestinos. Crimes ainda mais graves porque 70% da população de Gaza tem menos de 18 anos’. Dentro de Israel, entretanto – com raras exceções – a população apoiou a operação militar do governo israelita. Mais do que isto, as pesquisas de opinião constataram que o apoio da população foi aumentando, na medida em que avançavam os bombardeios, até chegar a índices de 90%. E no final, na hora do cessar-fogo, metade desta população era favorável à continuação da ofensiva, até a reocupação de Gaza e a destruição do Hamas. (FSP, 24/01/09).”
Benjamin Netanyahu declarou que “nunca haverá um Estado Palestino”. Mesmo durante os “Acordos de Oslo”, na década de 1990, quando palestinos e israelenses negociaram a “solução de dois Estados”, Israel não considerou de fato conceder soberania plena sobre os territórios da Faixa de Gaza e da Cisjordânia e o resultado foi a criação de um ente bem mais limitado, a “Autoridade Palestina”, uma espécie de governo local “sob procuração” de Israel, despossuído dos instrumentos legais, do aparato técnico e recursos financeiros para comandar um Estado. A ação dos dias atuais na Faixa de Gaza é a continuidade de um projeto contínuo de anexação dos territórios, de uma terra que originalmente era compartilhada entre judeus e árabes.
Algumas vozes na esquerda israelense denunciam a tragédia humana desta guerra e sua instrumentalização por Netanyahu, que a mantém por seu propósito de sobrevivência política e escape de responsabilização judicial por acusações de corrupção ou incompetência frente aos ataques do Hamas. Tem visão diversa sobre a sociedade israelense, enxergando esta como mais dividida e com problemas sócios-econômicos. À semelhança do que ocorreu nos EUA e Europa nas últimas décadas, a polarização social, a desigualdade também aumentou muito em Israel. A respeito, também no texto de Bowen: “Avrum Burg, escritor e forte crítico de Netanyahu, foi um dos mais proeminentes políticos de centro- esquerda de Israel.(...) Os israelenses, reflete o Sr. Burg, estão ‘em algum lugar entre a excitação religiosa e o desespero psicológico’ Não há meio-termo, argumenta ele. ‘Alguns israelenses, a maioria do governo, acreditam que estamos vivendo em uma época milagrosa. É uma oportunidade. É uma dádiva divina. É uma oportunidade única na vida para realinhar, reorganizar, refazer algo com a história. E tantos israelenses sentem e percebem – para quê? O que isso significa? Por que eu tenho que pagar o preço? É uma guerra sem sentido. No meio, não há Israel. Israel é um tecido social fragmentado, quebrado e dilacerado."
E, do ponto de vista geopolítico, Israel é uma criação dos ingleses e norte-americanos. Seu papel de defensor dos interesses da maior potência do mundo na região vem garantindo apoio praticamente incondicional, sem limitação a recursos financeiros ou militares. E tragédia deverá seguir por bom tempo, talvez finalizada pela execução do projeto de limpeza étnica e retirada total da população palestina da Faixa de Gaza, uma infâmia que Donald Trump já repetiu publicamente estar disposto a patrocinar.
POR QUE PAÍSES EUROPEUS SE AFASTAM DE ISRAEL
Por Flavio Aguiar
Perante o Parlamento Europeu, em Estrasburgo, a sempre comedida Ursula von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, órgão executivo da União, fez um dos pronunciamentos mais contundentes de sua vida. Depois de atacar a Rússia pela guerra em curso na Ucrânia, o que já era esperado, fez uma veemente condenação da ação do governo israelense em Gaza, dizendo que usar a fome como arma de guerra é inaceitável. Defendeu a solução dos dois estados, propôs a suspensão de várias frentes de cooperação com Israel, ressalvando algumas, como a do financiamento do Museu do Holocausto. Falou em sanções contra ministros israelenses extremistas e também contra colonos que ocupem terras palestinas na Cisjordânia. Exortou a adoção de sanções comerciais contra Israel e comprometeu a Comissão com a proposta de financiamento da reconstrução de Gaza para os palestinos, algo diametralmente oposto à proposta de expulsá-los de lá e criar uma “Riviera no Oriente Médio”, conforme declaração do presidente Trump tempos atrás.
Ficou no ar a pergunta: por que tanta ênfase, depois de mais de dois anos de omissão europeia generalizada diante do genocídio praticado pelo governo israelense em Gaza e da renovação de atrocidades na Cisjordânia?
Há várias hipóteses para tanto, sendo a pri ncipal delas a conjunção de todas.
- 1- O pronunciamento de von der Leyen aconteceu depois de um grande número de governos europeus, liderados pela França e pelo Reino Unido, terem declarado reconhecimento de um Estado Palestino, embora este reconhecimento seja virtual, porque este Estado, na prática, ainda não Tal atitude por parte destes governos deve ter por motivo a expressiva presença de muçulmanos e árabes em seus territórios, sobretudo na França. Há o temor de represálias vingativas pelo que acontece em Gaza, sob a forma de ataques terroristas ou protestos políticos que agravem a fragilidade de muitos destes governos, como também é o caso da França.
- 2- Os países europeus vêm enfrentando problemas econômicos graves, com tendências recessivas variadas conforme as condições de cada um deles, e agravamento de tensões Uma crise com países muçulmanos e árabes agravaria tal situação. As relações comerciais com pelo menos seis países árabes, incluindo a Arábia Saudita, é crucial para os países europeus. A Europa importa petróleo e derivados dos países árabes e exporta para eles sobretudo maquinário industrial, produtos químicos e meios de transporte. A importação de petróleo é vital, sobretudo neste momento em que o fornecimento de gás russo está comprometido ou amaçado devido ao clima conceituado com Moscou.
- 3- As atitudes do governo de Israel, em represália ao ataque de 7 de outubro de 2023, passaram de todos os limites imagináveis, com a destruição genocida de Gaza, provocando a morte de mais de 60 mil palestinos, incluindo mulheres, crianças e idosos, o assassinato de pessoal médico e de jornalistas, a violência do Exército e dos colonos israelenses contra palestinos na Cisjordânia, com a violação de todas as normas do direito internacional, culminando com o recente atentado contra dirigentes do Hamas em território do Qatar. Tal violância tem provocando reações internas na Europa, incluindo pressão de funcionários da União em Bruxelas e Estrasburgo para que a UE tome atitudes vigorosas contrárias a tais arbitrariedades.
- 4- O pronunciamento de von der Leyen visa também retomar algum protagonismo da União em momento em que sua presença geopolítica está fragilizada por dois fatores. Primeiro, há sua seguida subserviência diante das políticas e imposições de Donald Trump, sejam as tarifárias ou as que exigem maiores despesas armamentistas, além da compra de gás e de outros produtos norte-americanos, e pressões contra a China. Distanciar-se de Israel é um modo de mostrar independência em relação a Washington, mesmo que ela seja muito relativa. Segundo, Israel também é um fator de divisão na Se França e Reino Unido (por fora da União) pressionam por um reconhecimento do Estado Palestino, e têm seguidores, Alemanha e Hungria se opõem a tal movimento, e também têm seguidores, embora em menor número. Assim, a atitude de von der Leyen visa “botar alguma ordem na casa”, reiterando a liderança por parte dos órgãos centrais da UE diante de um contexto adverso de fragmentação do conjunto.
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Em último lugar, deve-se assinalar que a atitude da líder da Comissão Europeia e dos países que se comprometem com o reconhecimento do Estado Palestino deveria servir de alerta ao povo israelense e aos judeus do mundo inteiro. Apesar do tom arrogante de Netanyahu e da extrema direita israelense, o fato é que Israel está cada vez mais isolado na cena internacional, dependendo completamente do poder de seu lobby reacionário nos Estados Unidos. Tais atitudes por parte do governo israelense estão colocando o país numa espécie de túnel sem luz no seu fim. E quanto ao resto do mundo, deve-se reconhecer que o persistente antissemitismo tem raízes religiosas, culturais e racistas milenares, e que hoje seu maior promotor é o governo de Netanyahu e seus comparsas da extrema direita israelense.
TRUMP E MADURO, EM 2025
Por Pedro Silva Barros
Nos últimos dois meses houve uma escalada na disputa entre Estados Unidos e Venezuela. O acirramento retórico foi acompanhado de exercícios e deslocamentos militares. De um lado, Donald Trump acusa Nicolás Maduro de liderar um narcoestado e movimenta tropas e equipamentos em direção à costa venezuelana próxima ao Caribe, de outro Maduro mobiliza milicias e tenta estreitar laços com outras potencias extrarregionais.
Trata-se do segundo tempo de uma disputa entre líderes controversos que já coincidiram no poder de seus respectivos países entre 2017 e 2020, mas que agora encontram um mundo mais instável e aberto ao conflito. A tensão no Caribe é menor se comparada ao leste da Europa ou ao Oriente Médio e, em grande medida, terá seus movimentos determinado pela evolução desses outros conflitos.
Trump tomou posse de seu segundo mandato presidencial em janeiro de 2025, mesmo mês de Maduro, que havia sido reeleito seis meses antes. Trump poderia ter tido uma postura agressiva contra o líder venezuelano no discurso e nas ações. Maduro estava debitado por seu controverso processo eleitoral, cujo resultado não foi reconhecido por muitos países, entre eles o Brasil. Mas Trump preferiu marcar posição sobre a Groenlândia e o Panamá e concentrar seus ataques iniciais ao México. Embora a Venezuela tenha recursos naturais em quantidade bastante superior aos da Groenlândia, o país caribenho não foi alvo no início de 2025. Trump omitiu Maduro de sua agenda imediata, ignorando os apelos de María Corina Machado e outras lideranças da extrema direita venezuelana.
A posição de Trump parecia clara em dar prioridade às questões migratórias e garantias de insumos e logística. Para as relações bilaterais com a Venezuela isso poderia ser resumido em Mais Petróleo, Menos Migração, que na prática seria aumentar autorizações para a atuação da Chevron na Venezuela com licenças maiores para importações de petróleo pesado do país em troca de apoio do governo venezuelano para receber centenas de milhares de migrantes que haviam chegado aos EUA nos últimos anos se valendo de permissões migratórias temporárias especiais relacionadas a situação política o país caribenho.
Assim, faria sentido uma aproximação com Maduro que ocorreu ainda no final de janeiro de 2025 com o enviado especial
Richard Grenell a Caracas para negociar pessoalmente com o presidente venezuelano. A conversa garantiu a libertação de alguns cidadãos estadunidenses presos na Venezuela e aparentava ser o melhor momento das relações bilaterais deste 2017. Semanas depois Trump, porém, houve alteração na posição dos EUA decorrente de disputas internas lideradas pelo assessor radical Mauricio Claver- Carone, face visível de lobby interno. Agora, os movimentos oscilantes entre ideológicos e pragmáticos se intensificaram.
EUA X Venezuela
Historicamente, os EUA dão atenção especial à Venezuela. Além da posição geográfica estratégica de um país caribenho, andino e amazônico, o petróleo foi determinante nas relações bilaterais do século XX, ainda que tenha perdido impulso nos últimos dez anos. Durante e no imediato pós-II Guerra a Venezuela foi o principal fornecedor de hidrocarbonetos aos EUA e a doutrina de política externa da Venezuela nos 40 anos que antecederam o chavismo se baseava em defesa da democracia formal e prioridade para as relações com o Império do Norte.
Durante o período chavista, iniciado em 1999, houve ações explícitas de ingerência estadunidense, como o apoio aos golpistas Pedro Carmona (2002) e Juan Guaidó (2019) combinadas com momentos de coexistência, especialmente no auge da Petrocaribe (2007-2013) e no ensaio de abertura cubana durante o final do período Obama (2015-2016). A política de apoio econômico aos vizinhos caribenhos era funcional aos EUA no sentido de limitar a emigração de guatemaltecos, haitianos, hondurenhos, jamaicanos, salvadorenhos, entre outros. No breve período em que os EUA tiveram uma posição menos agressiva a Cuba visando uma transição concertada, a rivalidade com a Venezuela também diminuiu.
Este movimento foi radicalmente alterado em 2017, com a primeira posse de Trump. Além de romper as negociações com Cuba, o governo Trump estimulou a conformação do Grupo de Lima, com muitos países da América Latina, incluindo Argentina, Brasil, Colômbia e México. Hoje, os três maiores países da América Latina são críticos à ingerência estadunidense.
A estratégia de derrubar o governo da Venezuela com isolamento político e asfixia econômica desenhada por EUA e Grupo de Lima em 2017 teve como resultados concretos a diminuição abrupta da produção petroleira registrada, o aprofundamento da crise social venezuelana e o fortalecimento político e econômico interno dos militares fiéis a Nicolás Maduro. Vendo-se distante de seus aliados tradicionais, a Venezuela tornou-se o maior devedor chinês na América Latina. A cada passo que os EUA e a Otan
avançavam no entorno russo, Moscou fortalecia os laços econômicos, políticos e militares com Caracas. Movimento perceptível há anos.
Em 2002, quando a direção da petroleira estatal PDVSA tentava derrubar o governo, Hugo Chávez recorreu ao Brasil para que fossem enviados navios para garantir o fornecimento interno de gasolina. Duas décadas depois, o Irã que cumpria esse papel. Na eleição parlamentar de dezembro de 2015, vencida pela oposição a Maduro, a principal missão externa de observação eleitoral foi da Unasul. Nas eleições parlamentares de dezembro de 2020, com baixa participação da oposição, a Turquia ocupou esse espaço.
Em junho de 2019, durante a realização da reunião do G20 no Japão, Bolsonaro se reuniu formal e informalmente com Trump. Na conversa informal, Trump sugeriu que o Brasil atacasse a Venezuela, operação que contaria com todo o suporte dos EUA. A reação do então mandatário foi de que o Brasil não teria o menor interesse na operação. Após a reunião formal, Trump afirmou que Bolsonaro era um homem especial e que pretendia visitá-lo, o que nunca ocorreu. Desde o fim dos anos 1970, Donald Trump foi o único presidente dos Estados Unidos a não visitar o Brasil.
Após o fracasso do Plano Guaidó e das sugestões inusitadas, foi realizada a primeira visita de um secretário de Estado estadunidense à Ilha das Guianas. Em março de 2020, Mike Pompeu esteve na Guiana, Suriname, Colômbia e Roraima em uma mesma viagem com objetivo de cercar diplomaticamente a Venezuela.
A segunda visita de um secretário de Estado norte-americano ocorreu em julho de 2023, quando Antony Blinken esteve em Georgetown para marcar posição contra a investida venezuelana sobre o Essequibo, que seria objeto de consulta pública em dezembro daquele ano. Em março de 2025, Marco Rubio realizou a terceira visita de um secretário de Estado à Ilha das Guianas em um novo contexto consolidado. Depois de 5 anos, a produção de petróleo na Guiana deslanchou e o pequeno país vizinho tem extraído mais hidrocarbonetos do que a Venezuela. A viagem incluiu uma visita à Jamaica e encontros com vários chanceleres e presidentes caribenhos.
Em 2020, o Brasil havia fechado a embaixada em Caracas e retirado todos os funcionários públicos da Venezuela, rompendo com décadas de amizade e cooperação econômica, diplomática e militar. Um novo embaixador só foi enviado no décimo-quarto mês do terceiro mandato do presidente Lula, após a consulta sobre o Essequibo. O Brasil ajudou nos diálogos entre Caracas e Georgetown no início de 2024, mas está longe de ter uma presença econômica, política na Venezuela e na Guiana. A presença do Brasil no Caribe é
bem menor hoje do que era há 10 ou 15 anos. O comércio bilateral com a Venezuela retraiu 88% em termos reais e as relações diplomáticas voltaram a se distanciar depois da divulgação dos resultados eleitorais de julho de 2024.
Não é possível ter certeza sobre as formas de ingerência de Trump, mas parece que há uma ofensiva contra a América Latina, que tem como alvos imediatos o Brasil no que se refere ao assédio econômico por meio de tarifas e a Venezuela nas ameaças militares. Uma ação deste tipo, porém, dificilmente ocorreria sem apoio de países latino-americanos. O cenário mais provável é a busca por fantasmas, como o Cartel dos Sóis, sustentado pela construção ideológica de que as principais ameaças aos Estados Unidos no hemisfério são a migração e o narcotráfico, ocultando muitas vezes a busca por recursos naturais. Hoje, a Guiana passou a ser um fornecedor seguro aos EUA e um conflito aberto com a Venezuela poderia pôr em risco tanto a produção na projeção marítima do Essequibo como gerar uma crise migratória sem precedentes.
FRAGILIDADE FINANCEIRA DA ARGENTINA DE MILEI
Por Mirelli Malaguti
A Argentina em 1991, no contexto do Consenso de Washington, implementou o Plano de Conversibilidade, e dolarizou sua economia para acabar com o processo inflacionário derivado da crise da dívida externa dos anos 80. Após renunciar à soberania da sua política monetária, não conseguiu manter depósitos bancários conversíveis em Dólares e foi forçada a abandonar seu modelo monetário, mergulhando em uma profunda crise socioeconômica e política a partir de 2001. Com cinco presidentes em apenas 11 dias, queda do PIB de 4,4% em 2001 e de 10,9% em 2002, de forma que o país reagiu ao neoliberalismo com uma revolta popular.
Desde 2003, sob os governos de Néstor e Cristina Kirchner por
12 anos, a Argentina implementou um novo modelo monetário heterodoxo, com "dólar competitivo", Banco Central financiando o Estado, que conseguiu acumular reservas durante o boom das commodities. Mas após a crise de crise de 2008, teve que usá-las, tendo o retorno da inflação seguida pela indexação. Assim se implementou o "cepo cambial" para restringir a compra de Dólares por pessoas físicas e empresas, e se estabeleceu taxas de câmbio diferentes para importadores/exportadores. A dívida externa que diminuiu com o pagamento ao FMI, voltou ao crescer.
Macri, em 2015 voltou ao modelo liberal. Estabeleceu o fim do controle cambial, adotou o regime de metas de inflação, passou a usar as taxas de juros como instrumento de captação de fluxos especulativos e recorreu ao endividamento externo com emissão de títulos em dólares e o maior empréstimo da história do FMI em US$ 57 bilhões.
Em 2019, Alberto Fernandes, apoiado por Cristina, tenta retomar o seu modelo, apesar de ter assumiu em condições completamente avessas, seja pelo endividamento que recebeu, como pelo momento de pandemia, com mais desvalorização cambial e inflação. Na conjuntura de escassez de divisas e elevado endividamento, optou por um controle cambial mais rígido, e taxa de câmbio múltipla.
O autodenominado anarcocapitalista Javier Milei assumiu culpando a crise pela intervenção estatal e propondo a dolarização da economia Argentina. Seu modelo baseia-se em: 1. ajuste fiscal radical, 2. eliminação da emissão monetária para financiar o Estado,
- Dolarização e fechamento do Banco Central, e 4. transição com juros altos e liberalização de preços.
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Imediatamente, reduziu em 30% os gastos do Estado em relação a 2023 com demissão de funcionários públicos, suspensão de obras, corte de subsídios aos setores de energia e transportes e redução das transferências às Províncias. Ademais, implementou uma forte desvalorização cambial inicial e manteve o cepo cambial até abril de 2025, contrastando com a defesa prévia da livre flutuação, que acabou sendo retomado em set/2025, dada a elevada desvalorização.
A política monetária focou nas dívidas do Banco Central Argentino (BCRA) e títulos de dívida usados para tirar pesos da economia, LELIQs. Os bancos compravam esses títulos, e os lucros gerados por esses instrumentos eram a principal fonte de rentabilidade do sistema financeiro.
Em 18 de dez/2023, os bancos detinham US$ 25 trilhões em PASES e LELIQs, enquanto os passivos incluíam depósitos a prazo fixo do setor privado em Pesos em US$ 12 trilhões, e o total de empréstimos ao setor privado em Pesos em US$ 15,5 trilhões.
Foi anunciado o fim das LELIQs e sua substituição definitiva pelas PASES, com a redução da taxa básica de juros de 133% para 80% até mar/2024, e a emissão de novos títulos do BCRA a importadores (BOPREAL) para absorver Pesos de empresas com pagamentos de importação pendentes. Em abr/2024, o passivo do BCRA totalizava US$ 41,7 trilhões em títulos do PASES e do BOPREAL, enquanto o total de depósitos a prazo fixo do setor privado em Pesos somava US$ 18 trilhões.
O BCRA anunciou então sua meta de eliminar completamente seus títulos. Isso envolveu a transferência de liquidez do BCRA para os bancos que optaram por aplicações em LECAPs, Títulos do TN, e empréstimos ao setor privado. As instituições financeiras reduziram suas posições em PASES de US$ 32,8 trilhões para US$ 10 trilhões de mai a jul/2024. Em mai/2024, A taxa de juros anual de retorno foi reduzida de 101% para 49% eo estoque de LECAP foi de US$ 700 bilhões a US$ 21,6 trilhões. O movimento foi claro: o BCRA recuou da tarefa de "absorção", cedendo seu lugar ao TN.
Em jul/2024, com a extinção do PASES, o BCRA anunciou que a taxa de política monetária estaria em um novo título do TN, o LEFI. O resultado obtido nessa fase foi o crescimento dos empréstimos ao setor privado. Até o final de mai/2025, os empréstimos em Pesos ao setor privado totalizaram US$ 70 trilhões.
Inicialmente, a política monetária foi contracionista, apesar da queda da taxa de juros, por conta da absorção de Pesos com os títulos do BCRA: BOPREAL e PASES. A partir de abr/2024, a política monetária se tornou expansionista, caracterizada pela eliminação
dos instrumentos de "absorção" do BCRA, o que significou a emissão de Pesos que os bancos canalizaram para títulos do TN e empréstimos ao setor privado. E entre nov/2023 e jun/2025, a Base Monetária (BM) cresceu 31%, enquanto o M2 privado aumentou 10%. A partir de jun/2024, houve um aumento significativo nos empréstimos em Pesos para o setor privado, o que levou ao crescimento real de 133% no crédito entre abr/2024 e jun/2025, um dos motores da recuperação econômica.
A partir de jun/2025, o BCRA anunciou o fim do LEFI, esperando aumento da liquidez e queda da taxa de juros, marcando uma transição para uma política monetária baseada em agregados monetários, onde a taxa de juros é determinada endogenamente pela oferta e demanda de moeda. Comparado ao modelo anterior, esse arranjo é mais frágil para as decisões monetárias, já que os títulos do TN têm maior risco, ao contrário dos títulos do BC, de risco nulo.
O fim do LEFI rompeu a relação entre a taxa de juros e as expectativas de desvalorização, forçando um leilão fora do cronograma de títulos do TN com taxas de juros mais altas e o BCRA a voltar a oferecer PASES a um custo mais alto que o LEFI. Às vésperas do processo eleitoral, esperava-se que a decisão contribuísse para sustentar a expansão do crédito.
O anúncio deu errado e o governo teve que improvisar, primeiro anunciando um leilão fora do cronograma de títulos do TN, com uma taxa mais alta, depois absorvendo Pesos novamente por meio de títulos do BCRA que não deveriam mais existir, os PASEs, a uma taxa mais alta do LEFI. Dessa forma, o governo modificou o sistema de política monetária, por um em que os instrumentos de transmissão da taxa de juros são mais fracos e mais caros. A taxa de juros paga sobre os títulos do TN é superior à dos títulos do BCRA.
Ao todo, Milei apresenta um grande trunfo com foi a queda da vertiginosa inflação de 25% para menos de 3% ao mês, contudo, às custas da queda do PIB em quase 2%, em 2024. As perspectivas dependem crucialmente das exportações agropecuárias e da exploração de novas oportunidades em petróleo e minérios. A incapacidade de acumular reservas durante a safra é um problema que prejudica as atuais saídas de moeda estrangeira do país. O país está com fuga de divisas por todos os lados: importações, compras de dólares e turismo externo. Sem reservas, o sistema é insustentável, a única medida que parece ter dado algum resultado foi a regularização de dólares não declarados, conhecido como “blanqueio” na Argentina, da ordem de US$ 22,5 bilhões em 2024. Estima-se que os argentinos ainda tenham mais de US$ 200 bilhões debaixo do colchão.
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Milei acaba de ter uma derrota na eleição legislativa na Província de Buenos Aires, que concentra 40% do eleitorado argentino e mais de 30% do PIB do país, com apenas 34% dos votos contra 47% do bloco opositor. Nesse cenário, que Stiglitz aponta risco iminente de colapso financeiro na Argentina, já que o governo Milei vem ampliando o endividamento externo sem gerar entrada proporcional de Dólares para honrar seus compromissos. Isso significa que, em pouco tempo, o país pode enfrentar dificuldades para pagar credores, algo que historicamente precedeu períodos de crise na Argentina.
A DERROTA DA ESQUERDA NAS ELEIÇÕES BOLIVIANAS
Por Emir Sader
A Bolívia nos surpreende mais uma vez. Desta vez, negativamente. Em poucos meses, o país passou de um projeto concreto de luta contra o neoliberalismo para um segundo turno de eleições presidenciais, com dois candidatos de direita. Muitos fatores devem ser levados em conta para uma mudança tão radical de uma situação para outra.
O presidente do país era Luis Arce, ministro da Economia de Evo Morales, que buscava a reeleição. Evo se opôs à medida. Álvaro García Linera, que havia sido vice-presidente de Evo, propôs que Arce pudesse exercer um segundo mandato, como já havia feito.
Evo rejeitou a proposta, e uma guerra fratricida entre ele e Arce começou naquele momento. Este último retirou sua candidatura, mas Evo, que legalmente não pode ser candidato por ter exercido dois mandatos como presidente, insistiu em permanecer na disputa. Ele usou sua capacidade de mobilizar camponeses, especialmente em sua região natal, Cochabamba, para paralisar o país.
Enquanto isso, a situação econômica, que estava sob controle, começou a gerar inflação e aumentos descontrolados de preços, especialmente de bens de consumo populares. O governo Arce, que parecia ser o responsável pela crise econômica, também perdeu apoio.
O impasse estava estabelecido. Ancronico Rodriges, um jovem líder camponês que era presidente do Congresso, lançou sua candidatura como uma alternativa à polarização. Mas Evo também não o apoiou.
A direita, que havia sido marginalizada do governo pelos vinte anos de governos do MAS, encontrou uma maneira de ocupar seu espaço, lançando seus dois candidatos tradicionais, que começaram a se destacar nas pesquisas.
Evo, por sua vez, começou a fazer campanha, inclusive nas ruas, pelo voto nulo. No primeiro turno, o que parecia impensável finalmente aconteceu. Os dois candidatos de direita chegaram ao segundo turno. O candidato oficial do MAS e Andronico receberam poucos votos, assim como o voto nulo proposto por Evo Morales.
Assim, a Bolívia se encontra às vésperas do retorno da direita ao governo, com o fim do período virtuoso dos governos do MAS, que
contavam com amplo apoio popular. Um, mais moderado, Rodrigo Paz, senador de centro-direita; o outro, Jorge Tuto Quiroga, direitista tradicional, defensor da privatização de empresas públicas e do retrocesso do modelo neoliberal.
Rodrigo Paz venceu no primeiro turno e se tornou o favorito para se tornar o primeiro presidente de direita da Bolívia em 20 anos. Evo Morales, por sua vez, pode se considerar vitorioso. Seus apoiadores apedrejaram e vaiaram Andronico quando ele foi votar, tornando-o seu principal adversário.
A esquerda boliviana sofreu uma dura derrota, resultado, em parte, da guerra desencadeada entre ex-membros do MAS. Evo surge como a única expressão da esquerda boliviana com algum nível de apoio. Mas ele continua impossibilitado de concorrer a um cargo, devido a uma decisão do Judiciário, e sem maioria no novo Congresso, dominado pela direita, que possa reverter seu impedimento.
Um triste fim para o período político mais importante da história recente da Bolívia. Evo mantém altos níveis de apoio por ter sido o líder que personificou esse processo. No entanto, sem chances de se candidatar, ele também precisa responder pela sabotagem de uma candidatura de esquerda, representada por Andronico.
Confrontos fratricidas, como sempre ocorrem dentro da esquerda, são fatais para seu desempenho e para sua capacidade de representar uma alternativa para a Bolívia e qualquer outro país onde possam ocorrer.
O DIA EM QUE O BRILHO DA CHINA ECLIPSOU O OCIDENTE
Por José Luís Fiori
Nos oito primeiros meses de 2025, Donald Trump ocupou a primeira página dos principais jornais do mundo, praticamente todos os dias e semanas, com seu hiperativismo midiático e todo o tipo de decisões e iniciativas surpreendentes, unilaterais e arbitrárias na maioria dos casos. Muitas delas, inclusive, não foram implementadas ou nunca existiram. E outras tantas criaram enorme barulho, mas depois ficaram pelo meio do caminho. É o caso de seu anúncio da anexação do Canadá e da Groenlândia ao território dos EUA, ou suas bravatas pacifistas com relação às guerras da Ucrânia e de Gaza. E ainda, sua recente decisão de marcar data e convocar os presidentes da Rússia e da Ucrânia para uma reunião promovida por ele, mas que foi rejeitada pelo presidente ucraniano e solenemente ignorada pelo presidente Vladimir Putin...
No entanto, o que aconteceu na China entre os dias 31 de agosto e 3 de setembro de 2025 foi algo completamente diferente, não passou pela vontade ou decisão dos EUA e deixou Donald Trump inteiramente marginalizado, paralisado e sem capacidade de resposta frente ao gigantesco espetáculo promovido pelos chineses. Durante esses quatro dias, o mundo teve a certeza de que algo novo acabara de acontecer, sacramentando o declínio de uma “era eurocêntrica” e de uma ordem mundial “unipolar”, junto com o nascimento de um novo polo de poder mundial, com capacidade suficiente e projeto próprio de reorganização do mundo e das relações entre suas várias civilizações.
A 24ª. Cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, realizada na cidade de Tianjin nos dias 31 de agosto e 1º de setembro, e o grandioso desfile militar realizado em Pequim no dia 3 de setembro, em comemoração aos 80 Anos da Vitória da China contra o Japão, e contra o fascismo na II Guerra Mundial, foram antes que nada dois espetáculos programados e coreografados nos mais mínimos detalhes – como na tradição milenar dos grandes rituais chineses, com seus símbolos e significados que refletem a visão de seu povo a respeito da ordem social e cósmica, e que contêm mensagens que são praticamente inacessíveis para quem não possui a chave para decifrá-las.
Assim, do ponto de vista da crise contemporânea da ordem internacional e do caos geopolítico instalado pelo declínio da Europa, da desconstrução da hegemonia americana e do mandonismo
arbitrário de Donald Trump, esses dois eventos emitiram alguns sinais muito claros, através de gestos e palavras, mas também através do silêncio imponente das novas armas produzidas e apresentadas ao mundo no desfile da Praça da Paz Celestial.
Em primeiro lugar, destacam-se a duração da visita e o calor da recepção dada por Xi Jinping ao presidente russo, Vladimir Putin, deixando claro que sua amizade é indestrutível e que a aliança estratégica entre Rússia e China não foi, nem será abalada pela reaproximação entre a Rússia e os EUA de Donald Trump. Putin e Xi defenderam as mesmas posições na Cúpula da OCX e estiveram lado a lado no desfile militar, além de terem mantido várias conversas privadas e amistosas durante os cinco dias da visita do presidente russo à China. Em seguida, cabe destacar a entrada na conferência, de mãos dadas, de Vladimir Putin e do primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, até se encontrarem com o primeiro-ministro chinês, com quem se deram as mãos, formando um círculo inimaginável alguns anos ou meses atrás – três dos maiores e mais populosos países do mundo unificados pelo ataque econômico desastroso de Donald Trump contra a economia indiana. Por fim, como não ver a importância da chegada ao desfile militar do dia 3 de setembro, lado a lado, de Xi Jinping, Vladimir Putin e Kim-Jong-Un, representando os três países que lutaram juntos contra os EUA na Guerra da Coreia entre 1950 e 1953, logo depois do fim da II Guerra Mundial. Passaram uma imagem e decisão de retorno e releitura de uma história que eles consideram ter sido interrompida ou distorcida pala narrativa das potências ocidentais lideradas pelos EUA.
Na abertura da Cúpula da OCX, e frente aos seus convidados da Praça Celestial, o primeiro-ministro Xi Jinping fez dois pronunciamentos que deverão passar para a História, propondo a criação de uma nova ordem mundial baseada na igualdade, na consulta mútua, no respeito pela diversidade das civilizações e na busca do desenvolvimento econômico e na luta conjunta por um futuro compartilhado. Criticou veementemente todo tipo de “hegemonismo” e “política de força”, numa referência velada ao “supremacismo europeu” e à linguagem utilizada constantemente por Donald Trump e seu grupo de governo. Xi Jinping foi mais além e propôs diretamente a “iniciativa de uma nova governança mundial”, baseada em cinco princípios fundamentais: i) o respeito pela soberania de todos os Estados, independentemente de sua força; ii) o respeito ao direito internacional; iii) a prática igualitária de um multilateralismo renovado; iv) a criação de uma ordem voltada para a proteção e desenvolvimento das pessoas, na sua condição universal de seres humanos, e não apenas de indivíduos; e por fim,
- v) a adoção de medidas concretas e imediatas, com o objetivo último
de obter a paz entre os povos baseada no desenvolvimento conjunto e cooperativo de todos, sem nenhum tipo de dominação e colonialismo.
A Cúpula da OCX reuniu cerca de 20 chefes de Estados- membros do maior bloco regional do mundo – entre os quais Turquia, Egito, Irã e outros –, com cerca de 42% da população mundial e 24% da área territorial global. E o desfile militar, por sua vez, apresentou ao mundo as novas armas chinesas, que podem projetar seu poder ao redor do globo em caso de guerra, incluindo o míssil nuclear Dogfeng 5, capaz de atingir seus alvos a 20 mil quilômetros de distância – ou seja, qualquer ponto da Eurásia ou do “hemisfério ocidental” – ao lado de seus novos drones submarinos de grande porte e mísseis antinavio, capazes de desbloquear em conjunto o cerco marítimo do Sul do Pacífico, sustentado pelas forças navais de EUA e Grã-Bretanha junto com Austrália, Japão e Coreia do Sul.
Antes de iniciar-se o desfile desses armamentos e de mais alguns milhares de soldados, do alto do prédio da entrada da Cidade Proibida – no mesmo lugar em que Mao Tse Tung anunciou ao mundo, em 1949, a fundação da República Popular da China –, Xi Jinping também anunciou ao mundo que a China se colocava naquele momento ao lado da paz e da civilização, e se propunha a liderar, junto com os demais povos do Oriente e do Ocidente, uma nova ordem global. Na verdade, a China de Xi Jinping propõe que seja feita uma releitura do papel chinês na II Guerra Mundial e na derrota do fascismo, papel que foi literalmente negado ou cancelado depois da exclusão da China de Mao Tse Tung do Conselho de Segurança da ONU, em 1949 – exclusão que foi feita de forma absolutamente arbitrária e autoritária pelas chamadas “potências ocidentais”. E agora, ao lado desta releitura, Xi Jinping está reivindicando liderar a reorganização do próprio sistema das Nações Unidas, sem destruí-lo – pelo contrário, com a participação igualitária e proporcional de todos os povos, e com o fim definitivo da pretensão hegemônica das antigas potências europeias e dos Estados Unidos.
Ou seja, se fosse necessário identificar a mensagem principal desses três dias em que a China iluminou o mundo, é que ela e seus grandes aliados estão dispostos a reorganizar e sustentar uma nova ordem mundial pacífica e igualitária, que respeite as várias civilizações que coexistem na face da Terra. Uma ordem ancorada na estabilidade, na credibilidade dos valores, instituições e práticas historicamente comprovadas do pacifismo e da estabilidade chinesas. Por isso talvez a China tenha decidido fazer sua grande demonstração de força militar exatamente na majestosa Praça da Paz Celestial.














