SUMÁRIO
A DESORDEM MUNDIAL E O BRASIL
BRICS + E A NOVA MAIORIA GLOBAL
O AVANÇO DA DESDOLARIZAÇÃO
A “DESACELARAÇÃO” CHINESA
A CRISE ALEMÃ E O FUTURO DA EUROPA
O GOLPE DE NÍGER
A ESCALADA DE TAIWAN
A POLARIZAÇÃO AMERICANA
A BATALHA ARGENTINA
A AMEAÇA À SEGURANÇA ALIMENTAR
O DESCONTROLE CLIMÁTICO
O MUNDO MULTIPOLAR DA SAÚDE INTERNACIONAL
O G-20 E O DECLÍNIO DO “MULTILATERALISMO OCIDENTAL”
A DESORDEM MUNDIAL E O BRASIL
Por José Luís Fiori
Nesse momento, quando se olha para os desdo-bramentos da guerra que está sendo travada no território da Ucrânia, e para suas consequências imediatas, já se pode visualizar algumas características e desafios deste mundo que está nascendo à sombra da guerra e da desordem mundial criada pelo declínio da supremacia euro-americana, dentro do sistema internacional.
A simples invasão russa do território da Ucrânia já rompeu com a “ordem mundial” estabelecida pelos Estados Unidos e seus aliados da OTAN depois do fim da Guerra Fria. Além disso, a guerra acelerou a formação de uma aliança estratégica entre a Rússia e a China, que deu alguns passos diplomáticos gigantescos à sombra da própria guerra, na direção do estreitamente de suas relações econômicas e estratégicas e do alargamento de sua influência sobre o Oriente Médio e a África.
Por outro lado, o insucesso das sanções econômicas aplicadas à Rússia, pelos Estados Unidos e seus aliados do G7 e da União Europeia, com relação à suas próprias expectativas, trouxe de volta a corrida armamentista para dentro dos países europeus, assustados com a superioridade tecnológica do armamento e da capacidade de resistência da economia russa. Uma “corrida às armas” que se intensifica na mesma medida em que estes países europeus percebem a posição cada vez mais defensiva dos Estados Unidos, ainda que não menos agressiva, frente à inciativa militar russa, e frente à inciativa econômica chinesa. Para não falar que a maioria dos países do sistema mundial não acompanhou nem apoiou as posições euro-americanas nesta guerra. Neste sentido, olhando para a frente, pode-se antecipar que a hegemonia cultural dos valores europeus está ficando mais estreita, e que o império militar americano global está encolhendo, enquanto o mundo transita de um unilateralismo quase absoluto para um multilateralismo oligárquico, que vai ficando cada vez mais agressivo, pelas próprias exigências ou “regras” do sistema interestatal. Isto explica o esvaziamento atual das velhas instancias e instituições multilaterais de negociação e gestão internacional, como já havia acontecido com a OMC, ficou ainda mais claro quando a Rússia e a China não compareceram à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas realizada na cidade de Glasgow, um evento preparado cuidadosamente pela Inglaterra e pelos Estados Unidos. E agora vai se repetir de novo na Reunião do G20 que se realizará agora no mês de setembro na Índia. Uma vez mais os presidentes da China e da Rússia estarão ausentes, alegando motivos diferentes, mas com o objetivo - em última instancia – de esvaziar um espaço de discussão econômica que está perdendo sua importância paralisado pela guerra econômica dos Estados Unidos contra a China, e pela guerra da Otan com a Rússia no coração da Europa.
Como consequência, o mundo eurocêntrico está cedendo lugar a uma nova configuração de forças no continente eurasiano. Como se fosse um movimento de retorno ao primeiro milênio da nossa era comum, e à preeminência das grandes civilizações, religiões e impérios, e dos grandes circuitos comerciais mesopotâmicos e asiáticos. Ao mesmo tempo que se clarifica o novo eixo geopolítico mundial que deverá girar em torno de quatro grandes Estados “continentais” – Estados Unidos, Rússia, China e Índia – que detêm, em conjunto, mais de um quarto da superfície territorial do planeta, e cerca da metade da população atual do mundo. Nessa nova geopolítica destes “grandes impérios” do futuro, a Europa deverá ter papel menor e subordinado aos Estados Unidos, mas algumas outras “potências intermediárias”, como Brasil, Irã, Arábia Saudita, Indonésia, Turquia, África do Sul, deverão aumentar seu poder regional e passar a ter um papel maior à escala global, sem chegar a ameaçar o oligopólio imperial que deverá controlar o sistema internacional.
Tudo indica que a China não se propõe substituir os Estados Unidos e seus aliados europeus como centro hegemônico do sistema mundial, pelo menos na primeira metade do século XXI. Nem tampouco a Rússia tem possibilidade de alcançar este objetivo. Mesmo assim, a aliança entre a força militar russa e o extraordinário sucesso tecnológico e econômico da China, deve ter um impacto “exemplar” sobre o resto do mundo. Muito mais ainda, quando a China assume a clara liderança do “desenvolvimentismo” mundial, propondo-se liderar a construção de um “mundo inclusivo” e de soma positiva entre todos os povos do mundo, mas com destaque para os povos do chamado Sul Global, com uma ênfase particular na África. Como se pode observar na própria estratégia de expansão do BRICS, que se acelerou nestes últimos dois anos, sob a liderança estratégica da China, e à sombra do desafio vitorioso dos russos ao projeto militar global dos Estados Unidos e de seus aliados do G7. Trazendo para dentro do BRICS representantes de todas as grandes civilizações que dominaram o mundo até o Século XVII. O grande enigma, entretanto, com relação ao futuro, é sobre a possibilidade de uma coexistência pacífica entre estes quatro grandes “Estados-impérios” que deverão liderar o sistema interestatal durante o século XXI, um sistema interestatal que foi sempre movido pela sua luta contínua pelo “poder global”. A menos que no século XXI, o sistema interestatal regido em última instancia pelas estabelecidas a partir da Paz de Westfália, de 1648, vá sendo substituído por uma nova versão global do sistema “hierárquico-tributário” que regeu as relações milenares da China com seus povos vizinhos, e que agora passaria a regular as relações dos novos “grandes impérios” com suas velhas “zonas de influência”.
Neste momento, já na terceira década do século XXI, e depois de um período de retrocesso político e econômico, o Brasil optou democraticamente por um caminho diferente a ser construído. E apesar da destruição que o Estado e a sociedade brasileira foram submetidos depois do Golpe de Estado de 2016, o Brasil já adquiriu uma dimensão e um peso internacional que devem resistir e podem ser restaurados. Assim mesmo, para levantar-se sobre suas próprias pernas, o governo brasileiro terá que fazer algumas escolhas e tomar algumas decisões estratégicas fundamentais para viabilizar a construção e sustentação interna e externa de um novo modelo de sociedade e de crescimento econômico, e uma nova projeção internacional dos seus valores e interesses nacionais. E terá que construir um bloco de poder nacional e um sistema flexível de alianças internacionais capazes de sustentar o seu novo projeto de futuro. Tendo claro de antemão que ao escolher este novo caminho deverá sofrer inúmeros e continuados ataques que virão de todos os lados, de dentro e de fora do país. Neste ponto não há como enganar-se: ao se propor ascender dentro do sistema internacional, o terá que questionar inevitavelmente o status quo e os grandes acordos geopolíticos em que se sustenta a ordem internacional. Como disse, Norbert Elias, dentro deste sistema interestatal, “quem não sobe cai”, mas ao mesmo tempo há que estar preparado, porque quem sobe será sempre bloqueado e atacado, dentro e fora do país, e de forma cada vez mais intensa e coordenada, por não submeter à vontade estratégica dos velhos donos do poder global.
BRICS + E A NOVA MAIORIA GLOBAL
Por José Luís Fiori
De forma muito curta e direta: a incorporação dos seis novos membros do BRICS significa uma verdadeira “explosão sistêmica” da ordem inter-nacional construída e controlada pelos europeus e seus descendentes diretos há pelos menos três séculos. Mas seus efeitos e consequências mais impor-tantes não serão imediatos, e irão se manifestando na forma de ondas sucessivas, e cada vez mais fortes. Exatamente porque o BRICS não é uma organi-zação militar do tipo OTAN, nem é uma organização econômica do tipo União Europeia. Nasceu como um de ponto de encontro – quase informal – e um espaço de convergência geopolítica e econômica, entre países situados fora do núcleo central das grandes potências tradicionais, concentradas sobre o eixo do Atlântico Norte. Países que não são atrasados, nem, subdesenvolvidos, nem dependentes e que já são, ou se propõem ser grandes potências econômicas e políticas dentro de seus respectivos tabuleiros regionais. Na verdade, o próprio grupo original do BRICS já inclui três das cinco economias mais ricas do mundo, tomando em conta o seu “poder de paridade de compras”. Chamá-los de “sul global” me parece ser uma forma anódina e geográfica apenas, de renomear os antigos países do “terceiro mundo”, na sua maioria ex-colônias europeias. Os números estão sendo amplamente divulgados e todos já sabem que depois da incorporação dos seis novos sócios o grupo do BRICS terá mais de 40% da população mundial e cerca de 40% do PIB mundial, o que por si só já fala da importância deste grupo e de sua ampliação decidida na reunião de Joanesburgo. Agora bem ,apesar de que o BRICS tenha tido até hoje uma postura muito mais propositiva do que contestaria, não há dúvida que nos anos recentes, devido a belicosidade crescente entre os Estados Unidos e a China, e devido sobretudo à guerra no território da Ucrânia entre os países da OTAN e a Rússia, o BRICS acabou sofrendo uma mudança de natureza, tornando-se uma organização de resistência, sobretudo, com relação às estruturas e instituições econômicas e financeiras utilizadas pelos EUA e seus aliados europeus e asiáticos, que operam como verdadeiras armas de guerra nos momentos de intensificação da compe-tição e de acirramento dos conflitos entre esses países reunidos no G7 e os demais países que eles agora chamam de “sul global”, apesar da incorreção geográfica da expressão uma vez que seu principal inimigo neste momento, a Rússia, encontra-se ao norte de quase todos os países do G7. Seja como for uma coisa é certa, depois de Joanesburgo, o BRICS já é um ponto de referência incontornável dentro do sistema internacional, e dependendo da reação dos Estados Unidos e dos europeus, poderá se trans-formar nos próximos anos, num grupo de poder com capacidade de estreitar cada vez mais o horizonte do projeto de poder global dos Estados Unidos e seus aliados do G7.
Deste ponto de vista, não há como não perceber que a partir de 2024 o Brics+ estará reunindo alguns dos países detentores das maiores reservas de petróleo e gás do mundo, além de incluir alguns dos seus maiores produtores de grãos e alimentos. Para não falar dos recursos minerais estratégicos que se concentram nesses mesmos países, associados às velhas tecnologias nucleares e às novas tecnologia associadas à computação quântica, à inteligência artificial e a robótica. Mas não há dúvida que no médio prazo, o maior golpe econômico desferido contra os interesses americanos e do G7 veio de outro lado, mas deverá atingir em cheio o poder monetário e financeiro do Dólar e dos Estados Unidos. De fato, a reunião de Joanesburgo não criou uma nova moeda nem discutiu abertamente a criação dessa moeda. Mas de forma discreta antecipou a substituição do dólar nas transações energéticas entre os países-membros do grupo e desses países com todas as suas “zonas de influência”. E este talvez seja o maior golpe desferido até hoje contra a hegemonia do dólar, desde os Acordos de Bretton Woods, em 1944, e desde o grande acordo firmado entre os Estados Unidos e a Arábia Saudita, logo depois da II GM, quando ficou estabelecida e garantida a intermediação do dólar, em todas as grandes operações do mercado mundial do petróleo.
Assim mesmo, apesar do sucesso da reunião de Joanesburgo, a imprensa brasileira tem feito várias críticas ao que teria sido, i) uma perda do peso relativo do Brasil dentro do grupo do Brics; ii) o aumento da presença de países não democráticos dentro do gruo; iii) e, finalmente, o aumento da dependência econômica brasileira com relação à China. Com relação à perda de peso relativo do Brasil dentro do grupo, devido ao aumento do número de seus membros e do seu “colégio eleitoral”, é necessário chamar atenção para dois aspectos deste problema: o primeiro é que os países membros originários associados ao acrônimo do grupo manterão sempre uma maior presença e peso relativo, pelo simples fato de que são seus “sócios fundadores”. Sendo óbvio, entretanto que isto depen-derá muito de quem sejam seus governantes e do grau do apoio interno e da coesão de que disponham da parte de suas elites econômicas, sociais e políticas. Por outro lado, a diminuição do “peso eleitoral” de cada um dos membros originários do grupo é um preço inevitável a pagar, uma vez que o grupo tenha tomado a decisão, ou tenha sido levado a expandir-se, deixando de ser um mero grupo diplomático ou comercial, frouxo e quase casual, para transforma-se num “grupo de poder” com peso crescente dentro dos fóruns internacionais.
Com relação à crítica à polarização entre países democráticos e autoritários dentro do grupo, é importante ter presente é que o Brics nunca se propôs a ser um grupo de países democráticos, nem muito menos um grupo missionário pregador da fé na democracia. Trata-se de um grupo pragmático e que tem por princípio a ideia chinesa do respeito absoluto pela autonomia política e cultural de cada um de seus membros e dos seus povos.
Por fim, há que lembrar que o Brasil não é o único país do mundo que tenha aumentado seu relacio-namento econômico com a China, nestes últimos anos. O mesmo aconteceu com toda a América Latina e África, mas também com a Europa e os Estados Unidos. Por isto mesmo, o grande desafio da política externa brasileira neste momento é saber construir uma resposta inteligente, flexível, e o mais consensual possível, de aproveitamento das circunstâncias criadas por esta nova realidade. Exatamente o contrário do que os Estados Unidos estão fazendo, e por isto estão perdendo espaço no mundo, ao mostrar-se incapazes se ajustar à novas realidade, tentando fazer a roda da história parar ou voltar para trás.
O AVANÇO DA DESDOLARIZAÇÃO
Por Andrés Ferrari Haines e Alessandro Donadio Miebach
Uma das consequências da Guerra na Ucrânia é o movimento para deslocar o dólar americano de sua condição de moeda internacional, o que implicaria em uma mudança estrutural na ordem mundial. Análises convencionais consideram quase impossível que o dólar abandone o seu papel de moeda internacional.
Assim, no sistema SWIFT o dólar é utilizado em 84% das operações comerciais e representa quase 60% das reservas internacionais do mundo. Aproximadamente 80% dos dólares existentes estão em mãos de estrangeiros. As participações globais, embora crescentes, do yuan e do seu sistema CIPS de pagamentos internacionais não se aproximam do SWIFT e do dólar. Além disso, a China mantém um controle rígido sobre o dinheiro que entra e sai do país – o que revela que não é seu propósito que o yuan ocupe o lugar do dólar como moeda internacional.
Porém a visão convencional desconsidera que a desdolarização trata fundamentalmente do desejo de vários países de impedir que os Estados Unidos continuem a usar a sua moeda nacional como instrumento de poder no sistema internacional. A compreensão do significado da desdolarização é que a onipresença do dólar como base monetária global esconde o fato de este não ser uma "moeda internacional", mas uma “moeda nacional” sendo usada como “moeda internacional”.
Durante os anos dourados, o Ministro das Finanças francês, Valéry Giscard d'Estaing, denunciou os EUA por procurarem o privilégio exorbitante de não terem de se ajustar como todos os outros países. Privilégio que os Estados Unidos procuraram garantir quando – terminando com Bretton Woods – em agosto de 1971, acabaram com a conversibilidade do dólar ao ouro. Desde então, o dólar passou a não ter nenhuma outra referência de valor que a determinada pelos EUA.
Os EUA abriram o seu sistema financeiro e começaram a pressionar outros países a fazerem o mesmo – ao mesmo tempo que derrubavam barreiras comerciais. As novas receitas econômicas seriam logo pautadas como Consenso de Washington e, após a queda da URSS, responderiam à nova ordem mundial da globalização. Sem quaisquer restrições, a emissão de dólares pôde expandir-se sem limites e os outros países tiveram que absorvê-la, aplicando-os em títulos de dívida do governo dos EUA, e compondo assim suas reservas internacionais.
A emissão de dólares serviu para financiar guerras intermináveis, intervenções militares, armar grupos internos em conflitos civis, renovar e expandir o arsenal de guerra, e aumentar e manter as oitocentas bases e instalações militares. Líder em gastos militares, o orçamento militar dos EUA excede a soma dos próximos dez países em nível de gastos. Isto prosseguiu até o presente, conforme expresso pelos mais de cem bilhões de dólares que os EUA enviaram à Ucrânia e pelo orçamento do Departamento de Defesa de mais de mais de US$ 2 trilhões neste ano.
Os EUA também passaram a utilizar esse poder aplicando sanções –estima-se que afetam pelo menos 40% da população mundial – excluindo países do sistema SWIFT, para que não possam importar produtos básicos e alimentos. Como disse o secretário de Estado Mike Pompeo ao Irã, ameaçando impor sanções: “É melhor pensar no que está fazendo se quiser que o seu povo coma”.
Na Guerra da Ucrânia, os EUA achavam que a economia russa não resistiria às sanções. O resultado não foi esse devido à resiliência russa e porque a maioria dos países não ocidentais não aderiram às sanções. Ao decidir continuar a negociar com a Rússia, tornou-se necessário encontrar alternativas ao dólar.
Numerosas nações africanas, asiáticas, do Golfo Pérsico e latino-americanas expressaram-se neste sentido e os diálogos bilaterais se foram solidificando através da discussão em grupos de países fora do eixo ocidental – BRICS, Cooperação de Xangai, União Económica Eurasiática, ASEAN, União Económica dos Países do Golfo e União Africana. Caso especial são os BRICS que acabam de incorporar seis novos membros e ainda tem mais numerosos de pedidos, e em conjunto têm dimensões relevantes, que igualam ou excedem as principais nações ocidentais, no que diz respeito às magnitudes do PIB, dos recursos naturais, do território e da população.
Sem ter alcançado o seu propósito através das sanções, os EUA adotaram o recurso extremo de unilateralmente apreender US$ 300 bilhões da Rússia depositados no sistema financeiro em dólar. Essa medida extrema de sanções tinha sido pouco utilizada até então, nomeadamente com a Venezuela, o Irã e no Afeganistão – mas em muito menor grau.
A exclusão da Rússia do SWIFT teve impacto na função meio de pagamento da moeda que o dólar exercia internacionalmente. O confisco das reservas russas em dólares, por outro lado, foi um choque para a sua função como reserva de valor internacional. Abalou a confiança de muitos países na preservação dos seus saldos em dólares, uma vez que os EUA demonstraram que tais reservas podem ser bloqueadas em caso de “mal comportamento”.
Especial destaque foi que Arábia Saudita, após negar o pedido dos EUA para aumentar a produção de petróleo, passou a aceitar o yuan chinês como pagamento por exportações. Este fato foi reforçado pelo sucesso da diplomacia chinesa em conseguir que o país restabelecesse relações com o Irã – sendo ambos novos membros dos BRICS. Estes acontecimentos apoiam a especulação de alguns analistas de que o petroyuan estaria a emergir para substituir o petrodólar, que foi estabelecido na década de 70. Ou seja, o yuan substituiria o dólar como unidade de valor internacional dada a indispensabilidade global desse recurso.
No entanto, o dólar não será substituído como moeda internacional no sentido de que outra moeda nacional tomaria seu lugar. Os movimentos em curso sugerem, antes, que surgirão mecanismos monetários para retirar do dólar a sua capacidade de ser um instrumento de poder nos Estados Unidos – sem qualquer vislumbre de outra moeda nacional passe a ter essa capacidade.
Do ponto de vista das moedas internacionais, implicaria que, tal como no passado, poderiam ser utilizadas, além do ouro, várias moedas nacionais ou multinacionais – que funcionariam também como ativos de reserva. Esta é uma tendência que apresenta mais incógnitas do que certezas em seus detalhes, mas que, sem dúvidas, solidamente está em curso.
Uma questão fundamental é também observar como os Estados Unidos reagirão à perda de um instrumento de poder fundamental – e extremamente barato – com o qual expandiram a sua presença global no último meio século. Ao mesmo tempo cabe questionar como a economia global irá construir alternativas à relação de complementariedade entre a dívida pública dos EUA, e os ativos do resto do mundo, de 32 trilhões de dólares, dado que estes perfazem um terço do produto global.
Em suma, a desdolarização é irreversível, como argumenta o líder russo Putin; mas como ocorrerá ainda é um caminho aberto
A “DESACELARAÇÃO” CHINESA
Por Elias Jabbour
Temos assistido, nas últimas semanas, a uma verdadeira tempestade semiótica nos oferecendo uma série de análises sobre o inexorável declínio econômico chinês, suas consequências internas e externas. Evidente que pode gerar algum espanto nos acostumarmos com a ideia de um país crescer a dois dígitos por cerca de 30 anos para logo em seguida entrar em uma etapa onde o crescimento quantitativo deixa de ser tão relevante. Aqui está um ponto a ser levantado: a transformação do crescimento econômico chinês em algo mais qualitativo. Algo a ser exposto também é sobre as razões pelas quais os grandes veículos de comunicação e think tanks sediados nos Estados Unidos estarem concentrando energia em algo que os dados, literalmente, não comprovam. Estaríamos vivendo uma distopia?
Aos fatos, a economia chinesa tem previsão de crescimento para 2023, segundo o FMI, de 4,9%. Os Estados Unidos e Japão deverão crescer 1,3% e a União Europeia deverá ter crescimento de 1,0%. Ou seja, a China deverá crescer mais do que as três economias citadas de forma combinada. Há quem sustente que pelo fato de a China ainda contém uma grande parte de sua mão de obra ocupada na agricultura, logo existe “espaço” para maior crescimento e produtividade. Acredito que os termos da equação são outros. O primeiro deles o número de empregos urbanos a serem gerados este ano: 12 milhões na China. O país já alcançou protagonismo tecnológico em pelo menos 30 áreas sensíveis e caminha de forma mais acelerada do que se imaginava para alcançar os EUA nas chamadas infraestruturas de semicondutores.
Mas, contradições surgem e ressurgem ciclicamente como em qualquer sociedade em movimento, sendo certamente seu motor primário. O desemprego oficial entre jovens entre 18 e 24 anos alcançou 25%, o que significa algum indício de desequilíbrios sociais à vista cuja solução demandará o melhor dos cerca de dois milhões economistas e engenheiros de projetos responsáveis pela busca de solução de grandes questões levantadas pela realidade. Desde que o governo chinês decidiu furar a bolha imobiliária, o país convive com cerca de 25% de sua economia (construção civil) em sérias dificuldades, o que já começou a afetar o setor público da economia e as empresas estatais que foram assumindo pedaços de grandes companhias como a Evergrande. A leve queda das exportações, importações e dos preços internos contribuem com um quadro deflacionário que preocupa o mundo, evidente.
Outra decisão a ser levada em consideração no conjunto da análise é o enquadramento dos monopólios privados pelo Estado. A ofensiva contra o “avanço desordenado do capital” em vários setores da economia tem sido alegada como um dos motivos da queda brusca dos investimentos do setor privado. Estudo recém-lançado do Peterson Institute for International Economics demonstra que, pela primeira vez nas últimas décadas, o setor público da economia passou o peso do setor privado entre as cem maiores companhias do país.
Assim sendo, mudam os termos da questão. Como a China consegue crescer quase 5% em 2023 apesar desta gama de contradições? Em primeiro lugar, o país alcançou um nível de capacidade de gerenciamento de seu próprio futuro que o pode condicionar como e quanto crescer, a depender da contradição principal pela qual está exposta a sua sociedade. Algumas ideias-força são lançadas: “crescimento com qualidade”, “civilização ecológica socialista” e principal delas, “prosperidade comum”. As questões com as quais se defronta o Estado chinês hoje são completamente diferentes daquelas do início das reformas econômicas. Atualmente o eixo da contradição principal deixou de ser o baixo nível de desenvolvimento do país em face das necessidades materiais da população para questões relacionadas ao enfrentamento das desigualdades sociais e regionais, a transição energética e o desafio geopolítico que o Estados Unidos impõe sobre o país.
Esse desafio externo que expomos explica muito da tentativa de impor a visão de um declínio chinês aos olhos dos interesses dos Estados Unidos em geral e de Joe Biden em particular. Aqui lanço dois pontos. O primeiro é conceitual e se encerra na proposta para quem os chineses deveriam investir menos investimentos e consumir mais. Esta falsa contradição é primária em termos de teoria econômica e falsa em termos práticos. Vejamos o renomado economista e prêmio Nobel, Paul Krugman para quem o crescimento anterior chinês baseou-se “em grande parte ao acompanhar a tecnologia ocidental”, mas agora enfrenta o problema de demasiada poupança, demasiado investimento e muito pouco consumo. Precisa, portanto, de “reformas fundamentais” para “colocar mais rendimento nas mãos das famílias, para que o aumento do consumo possa substituir o investimento insustentável”.
Algumas questões são fundamentais: se a China deveria ter mais carros, mas estradas ruins? Será que são necessários mais televisores, mas menos apartamentos para os instalar? Será que a população precisa de mais alimentos e roupas, apesar de já estar, na sua maioria, bem alimentada e vestida decentemente há três décadas? Ou seja: 1) a queda da taxa de investimentos no país provocaria uma verdadeira hecatombe em termos de consumo popular e 2) fundamental lembrar que os salários médios chineses crescerem 270% nos últimos dez anos, ou seja, acima do crescimento do PIB, da inflação e da produtividade do trabalho.
O outro ponto é mais político e geopolítico. É evidente que às pretensões de Biden e de seu entorno é importante vender a ideia de um declínio chinês. Afinal, diante de imensos desafios internos a agressividade externa (chinesa) serviria como boa resposta. Ou seja, montar um cenário ideal para mostrar a China como uma ameaça à segurança mundial é fundamental aos EUA e Biden, independente de não haver nenhuma base militar chinesa próxima aos EUA e não se ter notícia da passagem de algum porta-avião chinês passeando pelo Golfo do México. O contrário é completamente verdadeiro.
Em suma, a China enfrenta uma série de pedras em seu caminho. Mas as perguntas a serem feitas estão longe da busca de resposta ao seu declínio econômico. Ao contrário.
A CRISE ALEMÃ E O FUTURO DA EUROPA
Por Wagner Sousa
O pesquisador Hans Kundnami, do think tank britânico Chattam House, ex-diretor acadêmico do European Council on Foreign Relations, na obra “The Paradoxx of German Power”, dá à especificidade do caso alemão, em sua inserção no contexto europeu, no período após o fim da Guerra Fria, a designação de “semi-hegemonia geoeconômica.” O livro explica como o país construiu sua liderança na União Europeia lastreada em sua altamente competente economia industrial exportadora (sem rival no continente), na união monetária que o beneficiou (em detrimento dos países do sul europeu, e também da França) e em aproximadamente três décadas de relações relativamente pacíficas com quase todas as nações do mundo, com destaque para dois países que se tornaram cruciais para a economia alemã: a Rússia (supridora de energia e importante mercado) e a China (o mais importante mercado, que superou, nos últimos anos, os EUA). Neste período, a estratégia de expansão pela economia, estava assentada na proteção da OTAN e no “guarda-chuva nuclear” dos Estados Unidos na Europa. O período descrito pelo economista francês Pierre Salama como “hiperglobalização” foi também de “conforto geopolítico” e possibilidade de expansão pela Eurásia e outras partes do mundo, de uma maneira que não era possível em tempos de Guerra Fria.
Não mais. Na conclusão de sua obra, Kundnami pergunta o que será do futuro da Alemanha. Na sua visão, não estava mais obrigada a estar atada ao Ocidente, a condição essencial para a pacificação com seus vizinhos após a derrota na Segunda Guerra Mundial. Esta condição teria passado a ser uma “opção”, com Berlim também podendo optar por laços mais firmes à Leste, numa aliança mais forte com Moscou e Pequim. Era o cenário que se colocava para o país, nesta leitura...até a Rússia cruzar as fronteiras da Ucrânia e a China passar a ser vista não apenas como um gigantesco mercado consumidor, mas como um competidor econômico, político e tecnológico dos europeus. A eventual supremacia política mundial de um “eixo Moscou-Pequim” passa a ser lida por muitos como ameaça à dominação ocidental global dos últimos três séculos, como também, em certos círculos políticos e acadêmicos, como “ameaça à democracia.”
A interpretação de Kundnami acerca da política externa alemã, como centrada fundamentalmente na geoeconomia como “motor” do crescimento econômico e expansão da influência política na Europa e no mundo; e do caráter limitado de sua “hegemonia” na União Europeia, justamente por estar lastreada na economia e não adicionalmente no hard power do poder militar mostrou-se correta. Nesta mesma análise, contudo, ao buscar prever cenários futuros, o autor não utiliza o mesmo raciocínio que usou para definir como “semi”, parcial, a hegemonia alemã na Europa. O que se coloca primariamente como limite ao poder alemão na Europa é a OTAN e seu controle pelos Estados Unidos. E no cálculo dos cenários futuros para a Alemanha não aparece a possiblidade de “veto” norte-americano para uma expansão à Leste. Foi o que ocorreu quando os EUA provocaram a invasão russa da Ucrânia.
Halford Mackinder, geógrafo inglês, considerado um dos pais da geopolítica e da geoestratégia em sua obra “O Pivô Geográfico da História”, criou o conceito de Heartland, “o coração da Terra”, localizado no centro da Eurásia. Na visão de Mackinder o controle do Heartland estaria no centro da disputa geopolítica global e ele entendia que os britânicos (o que foi posteriormente absorvido pelos norte-americanos) precisavam impedir a aproximação entre a potência que controla o Heartland, a Rússia, e a maior potência industrial da Europa, a Alemanha. O estabelecimento do gasoduto Nord Stream 2, entre a Rússia e a Alemanha, foi o ponto alto de uma relação geoeconômica marcada, na maior parte tempo nas duas últimas décadas, pelo desejo mútuo de aproximação e estreitamento de relações. O mercado consumidor russo se tornou importante para os alemães, mas especialmente foram os seus recursos energéticos que se tornaram cruciais. O gás barato russo foi essencial para a estratégia de exportações industriais da Alemanha, assim como se tornou bastante relevante para outros países europeus, como a Itália. A guerra entre Rússia e Ucrânia, não desejada pela maior parte da Europa, mas provocada por EUA e Reino Unido, quando não aceitaram nenhum tipo de negociação prévia à guerra e boicotaram as negociações diretas entre Ucrânia e Rússia está gerando enormes perdas à economia alemã, assim como para a Europa como um todo.
Também em relação à China, no contexto da disputa entre este país e os Estados Unidos, o governo alemão divulgou recentemente o documento “Estratégia para a China” em que pretende cortar a dependência do país asiático em setores considerados essenciais como insumos de saúde, baterias de lítio e semicondutores.
O que dizer do futuro da Alemanha? A resposta não é fácil e depende de variáveis internas e externas. A extrema-direita do partido “Alternativa para a Alemanha” (AfD) vem crescendo nas pesquisas, está em segundo lugar nas preferências (atrás apenas dos democrata-cristãos, CDU) é anti-integração europeia e mais próxima da Rússia. Até o momento as legendas tradicionais rechaçam coligar-se com o AfD. As legendas tradicionais, com as forças e ideias que atualmente as controlam, tendem a uma acomodação nesta situação de submissão renovada aos EUA como um “sócio menor” e tendem a participar ativamente do rearmamento e reforço da OTAN (o governo Scholz aprovou um orçamento militar recorde), inclusive com deslocamento de parte de suas forças para a Ásia, tendo a China como o país a ser “contido.” Uma aliança com a França e outros europeus (sem o Reino Unido) para uma “autonomia estratégica” europeia é objetivo muito difícil de ser alcançado pela multiplicidade de interesses envolvidos. Pouco evoluiu, até o momento.
Outra variável é a possiblidade de um futuro governo republicano nos EUA (com Trump ou outro) menos afeito às tradicionais relações com a União Europeia e mais próximo da Rússia. O que aconteceria com a União Europeia sem o apoio ou com apoio menor dos EUA? O bloco tem futuro sem a coesão da OTAN? Esta é uma questão relevante porque foi justamente a coesão dada pelo cenário de Guerra Fria que permitiu ao bloco os seus maiores avanços.
Kundnami pergunta se, após o fim da Guerra Fria teria ocorrido, contrariamente ao que defendeu Francis Fukuyama e a famosa alusão ao “fim da História”, com a vitória do liberalismo político e do capitalismo, “o retorno da História”, com a volta da “questão alemã” na geopolítica europeia. A Guerra da Ucrânia demonstra que a resposta a esta pergunta é sim.
O GOLPE DE NÍGER
Por Daniel Barreiros
No pós-Guerra Fria, golpes de estado na África não chamaram tanto a atenção dos analistas internacionais e dos governos ocidentais quanto o processo de ruptura institucional ocorrido no Níger em julho. O Níger responde por 5% da exportação mundial de urânio, produzido em associação entre a Orano (uma companhia de capital aberto, cujo 90% do controle acionário pertence ao estado francês) e a Société du Patrimoine des Mines du Niger, uma estatal local. Cerca de um quinto das importações francesas, e um quarto das importações de toda a União Europeia, são de origem nigerense. 70% de toda energia elétrica consumida na França é produzida por centrais nucleares, sendo a economia francesa a mais nuclearizada da Europa.
Desse modo, a crise no Níger traz um desafio, e devemos, portanto, esperar que o governo francês aumente o grau de atrito tanto com a junta militar nigerense quanto com quaisquer poderes locais (sem falar da Rússia e da China) capazes de ameaçar seus interesses energéticos, na eventualidade de as negociações com Niamei resultarem em fracasso. Ainda que o suposto embargo das exportações de urânio para a França tenha se provado apenas um boato, a postura do governo nigerense caminha para facilitar a operação de empresas chinesas e russas nesse setor, o que esvaziaria o virtual monopólio desfrutado pela Orano. Em qualquer caso, nessa renovada “corrida imperialista” na África ocidental, parece importante considerarmos não só os movimentos das potências, mas o modo pelo qual os governos locais também se movem.
Há ainda a presença militar norte-americana e francesa na região. Após serem retiradas do Mali e de Burquina Fasso com o fracasso da Operação Barkhane (voltada contra seções da Al-Qaida e do Estado Islâmico no Magrebe e no Sahel), forças militares francesas encontraram no Níger uma base de operações até então segura, e lá se concentraram. O problema do extremismo islâmico tem impacto ubíquo nas sociedades da África ocidental, especialmente entre as populações rurais. Então, os resultados minguados da atuação francesa logo foram sentidos, e o que fora justificado como um “ato humanitário” logo foi interpretado como um disfarce para uma ocupação colonial extemporânea.
O sentimento antifrancês se espalhou pelo país, movido naturalmente pela memória histórica; e se tornou um eficaz cavalo de Tróia nas mãos de uma contraelite que se apoderava do poder, depondo um governo inequivocamente associado a Paris e a Washington. As manifestações populares, instigadas por grupos da sociedade civil como o Movimento M62, e a efetiva presença russa na região logo se misturaram no imaginário, tornando a Rússia, na narrativa popular, um agente anti-imperialista.
A presença constante da bandeira tricolor russa nos protestos de rua não passou despercebida pelos serviços de inteligência ocidentais, e todo o contexto foi visto como um efetivo ponto de entrada a ser explorado por Moscou. O fato é que o fracasso da Operação Barkhane, somado à história colonial nigerense, deram à Rússia uma importante vantagem em termos de status e prestígio no Níger. Essa vantagem, no campo imagético e político, vem sendo insistentemente atacada pelas potências ocidentais. Resta saber até quando o Kremlin será capaz de sustentar uma narrativa anti-imperialista, ou mesmo se a presença militar russa na África ocidental será definitivamente enfraquecida após a morte de Yevgeny Prigozhin, em 23 de agosto passado.
No que diz respeito aos Estados Unidos, o Níger é um nó central na rede de ISR (Intelligence, Surveillance, Reconnaissance) da força aérea norte-americana, em seu monitoramento de todo o Magrebe. Duas bases de drones concentram esses esforços: uma nos arredores de Niamei, e outra no centro do país, em Agadez. Nesse momento, ambas estão impedidas de efetuar operações aéreas, por ordem do governo nigerense. Restrita à operação de drones sediados em Djibouti, Washington tenta resolver o imbróglio diplomaticamente, mas sem sucesso. E a se considerar a fracassada visita ao Níger da Secretária de Estado Adjunta em exercício, Victoria Nuland, já nos primeiros dias da crise, fica nítido que o governo Biden vê a situação como grave.
Neste momento, com a Guerra Russo-Ucraniana em curso, os Estados Unidos tentam limitar novos flancos e conseguir o máximo de ganhos diplomáticos no Níger (evitando, inclusive, reconhecer a natureza “golpista” do atual regime, em busca de manter canais abertos). E, se em alguma medida, o conflito na Ucrânia vem cumprindo um papel semelhante ao da dita “Guerra ao Terror” - capturando extrema atenção de Washington, e reduzindo a capacidade de ação norte-americana em outros tabuleiros - isso pode significar uma janela de oportunidade para os interesses chineses na África ocidental (e talvez também russos, enquanto essa presença em solo for conduzida por paramilitares).
Em resumo, temos os seguintes prospectos:
- É improvável que uma estabilização do poder aconteça no Níger, em médio e longo prazo, tendo em vista as restritas condições de negociação e pactuação entre elites político-militares;
- Dada a impossibilidade sociológica de acelerar um processo de fortalecimento institucional, a instabilidade política no Níger e em toda a África ocidental seguirá sendo um ponto de entrada para a alavancagem de interesses por parte das potências ocidentais, bem como de desafiantes como a China e a Rússia.
- No curto-médio prazo, a ameaça que paira sobre o futuro do fornecimento de urânio à França, e sobre as condições excepcionais desfrutadas pelo capital francês nesse setor, forçarão Paris a uma postura firme em relação à junta militar nigerense. Essa postura não exclui, no nosso entender, uma guerra entre a França e uma coalizão formada pelo Níger, Burquina Fasso, Mali, e eventualmente, a Guiné. Considerando a complexidade dos conflitos geopolíticos entre as nações da África ocidental, não é inverossímil que países da CEDEAO como Senegal, Gâmbia, Costa do Marfim e Serra Leoa se juntem à França em uma ação militar, caso esta possa ser justificada a partir de argumentos humanitários e de “restauração da democracia”. Ou ainda, o inverso: que a França use a CEDEAO como um proxy, apoiando e tirando proveito de uma intervenção militar conduzida por iniciativa desses países. Caso sejam esses os desdobramentos, devemos ficar atentos às movimentações do governo da Nigéria, país com proporções econômicas, demográficas e militares desproporcionais em relação aos seus vizinhos, e nitidamente indisposto a uma crise de maiores proporções em sua fronteira norte.
- No médio prazo, caso a presença russa perca força na África ocidental (a partir de um enfraquecimento operacional do Grupo Wagner), e sendo capazes de negociar com Niamei sua presença militar, é provável que os Estados Unidos rejeitem uma postura agressiva da França em relação ao Níger. A ruptura do monopólio francês na extração de urânio pode beneficiar empresas norte-americanas (ainda que igualmente empresas russas e chinesas), e nesse caso, os Estados Unidos não teriam qualquer benefício imediato em ladear com a França. A chance de Washington sustentar uma postura agressiva por parte de Paris cresce caso a presença russa se consolide na África ocidental, e o governo do Níger se mostre intransigente quanto à presença militar dos Estados Unidos no país.
A ESCALADA DE TAIWAN
Por José Luís Fiori
Nesta semana, a administração do presidente norte-americano Joe Biden anunciou que pretende fornecer a Taiwan a primeira assistência militar, no valor de cerca de US$ 80 milhões (R$ 395 milhões), no âmbito do chamado Programa de Financiamento Militar Estrangeiro que, de acordo com o jornal chinês, geralmente é destinado a países soberanos independentes.
Esse aumento da agressividade militar e diplomática americana na região, entretanto, não está sendo provocado apenas pelo sucesso e pelo aumento da importância econômico mundial da China, já vem de tempo e foi provocado pelo crescimento geométrico do poder naval da China, a partir da primeira década do século XXI, e em particular depois da posse do presidente Xi Jinping, em 2013, com seu projeto de fazer da China um poder militar global até meados do século XXI. Como resultado dessa decisão, a China adquiriu ou já produziu nesse período, 80 submarinos convencionais e atômicos de que dispõe atualmente, ao lado de 3 porta-aviões e mais 1.275 novos barcos que foram somados à sua guarda costeira, transformando-a no maior poder naval entre todos os seus vizinhos asiáticos.
Em 1954, o secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles afirmou que a ilha de Taiwan não passava de um “punhado de rochas”. Ao mesmo tempo, foi o próprio Dulles que ameaçou a China com um ataque atômico, caso tentasse retomar à força esse “penhasco” onde se refugiou, em 1949, o general nacionalista Chiang Kay-shek, junto com o que restou de suas tropas derrotadas pela revolução comunista liderada por Mao Tse-tung. E é verdade que em 1949, Taiwan tinha apenas sete milhões de habitantes e só sobreviveu como “província rebelde” graças à proteção militar dos EUA. Na prática, Taiwan se transformou num “Estado vassalo” dos EUA, com a pretensão irrealizável de “reconquistar” e “reunificar” a China. O mesmo objetivo invertido do governo chinês, uma vez que nenhum dos dois jamais aceitou a ideia americana de criação de “duas Chinas”. E foi aqui que começou a história contemporânea desse “penhasco”, que adquiriu importância estratégica cada vez maior com o passar das décadas, confirmando a tese de que é a luta pelo poder que define a importância da geografia, mesmo quando ela não disponha de nenhum recurso natural significativo. Começando em 1954, logo depois do fim da Guerra da Coreia, quando a China tentou retomar as ilhas de Quemoy e Matsu, no “caminho” de Taiwan, mas foi repelida pelos porta-aviões norte-americanos. Logo em seguida, foi assinado o “Acordo de Defesa Mútua”, que transformou Taiwan também num “protetorado militar”, uma vez mais defendido pelas forças norte-americanas em 1958, quando as tropas chinesas voltaram a ser repelidas das duas pequenas ilhas, e quando a URSS ameaçou pela primeira vez utilizar armas atômicas caso os EUA atacassem o território chinês.
Desde então e até o início da década de 70, vigorou uma espécie de “coexistência combatente” entre China e Taiwan, onde os EUA instalaram finalmente suas próprias bases militares. No entanto, a situação mudou radicalmente depois da assinatura do Comunicado de Shangai, em 1972, que consagrou a reaproximação entre os dois países depois do reconhecimento, por parte dos EUA, de que o território de Taiwan faz parte e é inseparável do território chinês, porque só existe uma China, com capital em Pequim. Depois desse reconhecimento, os EUA transferiram sua embaixada para Pequim, cancelaram o Acordo de Ajuda Mútua com Taiwan, desmontaram sua base militar na ilha e finalmente retiraram suas tropas do território de Taiwan. E foi esta vitória chinesa que abriu as portas para a integração econômica que fez de Taiwan o segundo maior investidor “estrangeiro”, na economia continental da China. Uma situação que se modificaria uma vez mais na década de 90, quando o primeiro governo eleito de Taiwan propôs a independência da ilha, mesmo sem contar com o apoio explícito dos EUA. A proposta provocou imediata mobilização militar da China, trazendo de volta ao Estreito de Taiwan os porta-aviões da Sétima Frota dos EUA, fato que foi decisivo para o rearmamento naval da Chaval.
Os EUA controlam hoje todos os pontos estratégicos entre o mar do Japão, o Oceano Indico e o Pacífico Sul capazes de bloquear instantaneamente os fluxos comerciais e energéticos indispensáveis à sobrevivência diária da China. Depois da decisão chinesa de criar um poder naval próprio, e após o gigantesco crescimento da economia chinesa, a situação ficou intolerável para os chineses. Estes agora já podem se propor a controlar o Mar do Sul da China e vencer os EUA em todos os cenários de guerra, além de dispor do poder naval, aéreo e terrestre para ocupar Taiwan, mesmo no caso do envolvimento de tropas americanas, a menos que os EUA decidam utilizar armamento atômico, com consequências imprevisíveis para os dois lados, uma vez que a China provavelmente responderia utilizando suas próprias armas atômicas táticas.
Os norte-americanos sabem que o controle de Taiwan deixou de ser apenas uma disputa territorial chinesa, e passou a ser uma condição essencial para que a China tenha acesso soberano ao Pacífico e ao Mar da Índia. E os EUA também sabem que os chineses podem ocupar e vencer Taiwan em poucos dias ou semanas, mesmo com a intervenção americana. Ao mesmo tempo, sabem que sua derrota na batalha em torno da ilha afetaria seu poder naval no sul do Pacífico, e sua credibilidade frente a seus aliados regionais e em todo o mundo.
Por isso, uma análise objetiva das forças em presença nos leva a pensar que os chineses estão com as “pedras brancas”, numa eventual partida de xadrez e que lhes caberia fazer a primeira jogada. Mas os norte-americanos possuem a “vantagem da defesa” de que falava Carl von Clausewitz, e só deveriam mover suas “pedras pretas” depois dos chineses. E dentro desta configuração ideal, se a China atacasse Taiwan, teríamos uma ordem mundial; mas senão o fizesse, teremos uma outra “ordem” inteiramente diferente, e o mesmo aconteceria caso os norte-americanos ultrapassassem a “linha vermelha” definida pelos chineses. Mas o que estamos assistindo neste momento são os Estados Unidos tomando a iniciativa de escalar o jogo e atravessar a “linha vermelha” traçada pelos chineses, e o que seve espertar é uma resposta chinesa cada vez mais ativa, e neste contexto um eventual “erro de cálculo” doa norte-americanos terá consequências catastróficas para toda a Ásia. Por isto se pode dizer que neste momento, o mundo talvez esteja muito mais próximo do imprevisível e de uma grande catástrofe em Taiwan, do que na Ucrânia.
A POLARIZAÇÃO AMERICANA
Por Andrés Ferrari Haines e Matheus Ibelli Bianco
Após a queda da URSS, os EUA projetaram um mundo de democracias. Em 2024, um novo presidente deverá ser eleito num contexto de enorme divisão e violência crescente.
Recentemente, a democrata Nancy Pelosi, que presidiu a referida Câmara entre 2019-23, declarou que Donald Trump não pode ser presidente novamente: se o fosse, “seria o fim dos EUA”.
Imediatamente a seguir, Pelosi afirmou que as acusações pelas quais Trump acabava de ser preso na Geórgia eram “lindas”. A democrata espera haver grandes chances de que o condenem, evitando assim a possibilidade instalação do que chamou de “uma empresa criminosa na Casa Branca”. Trump chamou Pelosi de “bruxa malvada” e “psicopata maluca”, a qual residirá no inferno após a morte.
Por trás das declarações grotescas, reside uma população que irá às eleições em 2024 sob uma divisão que parece irremediável entre democratas e republicanos. Assim, enquanto 84% dos primeiros aprovam as acusações contra Trump e 67% sustentam que este terá um julgamento justo na Geórgia, apenas 16% e 10%, respetivamente, dos republicanos o acreditam.
Os números se invertem quando se trata das denúncias de corrupção feitas contra o filho do atual presidente, Hunter Biden. Embora 92% dos republicanos acreditem que o filho se beneficiou do cargo de pai, apenas 14% dos democratas pensam assim. Se Trump é o réu no governo Biden, o republicano já anunciou que é Biden quem o será em um eventual retorno à presidência, como havia feito na campanha anterior.
Este corte partidário reflete-se em alguns números: 78% dos republicanos têm uma visão positiva de Trump, enquanto 88% dos democratas têm uma negativa. No caso de Biden, 88% dos democratas têm uma imagem positiva, mas ela é negativa para 91% dos republicanos. Enquanto 72% dos republicanos acham que os democratas são imorais, 63% dos democratas dizem o mesmo sobre os republicanos.
Mas a divisão partidária tem como pano de fundo um crescente descrédito ao sistema democrático. A princípio, essa situação se expressa na insatisfação com o parlamento. Cerca de sete em cada dez estadunidenses (72%) dizem que veem o Congresso de forma desfavorável. Esta percepção é agravada pelo fato de mais de 60% da população revelar insatisfação com ambas as partes. A opinião desfavorável dos dois partidos passou de 6% em 1994 para 27% hoje.
Durante esse período, 58% dos estadunidenses afirmam que as suas condições de vida diminuíram, enquanto 19% afirmam que são as mesmas; esta percepção é consistente com a percepção de 77% de sua população que acreditam que vivenciam um sistema econômico que é injusto para a maioria da população. De fato, a desigualdade de riqueza nas últimas décadas aprofundou-se acentuadamente. Desde 1978, o 1% mais rico do país viu a sua riqueza crescer, passando a possuir 35% do total do país, enquanto a metade mais pobre sofreu uma redução de um ponto percentual em relação aos 2,5% que possuía.
Os atuais 1% mais ricos, corrigidos pela inflação, estão 527% acima do seu património líquido em 1976, enquanto os rendimentos dos 50% mais pobres estão apenas 30% acima do seu nível em 1976.
Os rendimentos dos 0,01% mais ricos nos EUA dispararam quase 600% nesse período. Mas o salário mínimo aumentou nominalmente, desde 1981 até ao presente, em apenas cinco anos. Por outro lado, entre 1970 e 2022, a inflação acumulada foi quase o dobro do aumento cumulativo do salário mínimo. Desde 2009 o salário mínimo não apresenta elevações.
No entanto, desde 2009, a inflação aumentou. Houve picos devido à pandemia de Covid e como efeito da guerra na Ucrânia, estando nos valores mais elevados das últimas quatro décadas. A Reserva Federal, apesar da queda dos salários reais, considera que o aumento dos preços se deve ao excesso de demanda. Como consequência, respondeu aumentando a taxa de juros, afirmando que continuará nesse caminho.
Como resultado, um quarto da população manifesta dificuldades em fazer face às despesas básicas de alimentação ou habitação. Esta magnitude ultrapassa 50% quando se trata de pessoas de baixa renda: 10% dos domicílios afirmam passar fome e, em 2022, 41 milhões tiveram que recorrer ao Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP).
A situação não é pior pois milhões sobrevivem com crédito. O saldo devido pelos estadunidenses em cartões de crédito é superior a um trilhão de dólares. Mas com os juros deste empréstimo a atingirem mais de 20% e as dificuldades de fazer pagamentos, os saldos dos cartões de crédito crescem cada vez mais e aumentaram 45 bilhões de dólares entre abril e junho.
Consequentemente, o número de pessoas que lutam para pagar suas contas está aumentando. Pela primeira vez na história, o número de estadunidenses que acumulam dívidas de cartão de crédito mês a mês é maior do que o número de pessoas que pagam integralmente suas contas.
As extensas dificuldades económicas deixaram mais de 10 milhões de pessoas sem casas ou à beira de perdê-las: as hipotecas atingiram o seu valor mais elevado em mais de 20 anos. A habitação é agora menos acessível do que em qualquer outro momento desde a década de 1980.
Neste marco, o futuro não é visto com esperança pelos estadunidenses: 66% acreditam que em 2050 a economia estará fraca, 77% acreditam que estarão mais divididos internamente e 81% consideram que a distância entre ricos e pobres irá aumentar. Apenas 12% sentem-se confiantes no futuro do País. 97% da população está preocupada com a sua situação económica e 71% está assustada ou zangada.
Esse contexto vem agravando o estado mental da população. Mais de 70% admitem alguma preocupação com a sua saúde física e mental – os números mais elevados já registrados. Embora o número de pessoas que recorrem a um profissional de saúde mental tenha duplicado desde 2004, chegando a quase 25%, perto de 40% afirmam não ter condições para fazê-lo – mesmo considerando seus desconfortos.
A tensão existente manifesta-se no aumento da violência. Os casos de tiroteios em massa continuam a aumentar, ocorrendo agora em média a cada 12 horas. Estas afetam o aumento acentuado da taxa de mortalidade por armas de fogo entre crianças e adolescentes que, com uma média diária de 12 mortes e 32 feridos, é a mais elevada já registrada.
Além da retórica política, as pesquisas revelam um país violentamente dividido. Com a Guerra na Ucrânia sem perspectiva de uma resolução próxima aos moldes pretendidos pelos objetivos dos EUA, as próximas eleições ainda carregarão o peso de que o partido perdedor questionou o resultado das duas últimas votações presidenciais.
Num sistema bipartidário em que a grande maioria da população diz não se sentir representada, a única sincronia em que mais de metade dos Democratas e Republicanos parecem concordar é acreditar que o país é incapaz de resolver os seus principais problemas.
A BATALHA ARGENTINA
Por José Luís Fiori
Guido di Tella, ministro das Relações Exteriores do governo argentino de Carlos Menem em 1991 e 1993, foi quem defendeu pela primeira vez e de forma mais explícita, que a grande solução para a Argentina seria estabelecer “relações carnais”’ com os Estados Unidos, ou seja, transformar-se diretamente num vassalo ou colônia dos norte-americanos. A mesma estratégia tentada por outros caminhos pela sangrenta ditadura militar argentina entre 1975 e 1983, sempre com o mais absoluto fracasso, do ponto de vista econômico. E agora de novo, esta mesma e velha proposta da “integração carnal” com os norte-americanos volta ser esgrimida pelo candidato da extrema-direita, Javier Milei, que está liderando as pesquisas eleitorais argentinas. Uma recorrência trágica na história de um país que já foi um dos mais ricos do sistema internacional.
Basta reler a sua história para saber que, de 1870 a 1920, Argentina viveu um período de extraordinário crescimento econômico e expansão territorial. Em 40 anos, seu território mais que triplicou; sua população multiplicou por cinco; sua rede ferroviária passou de 500 para 31.100 km; e seu PIB cresceu a uma taxa média anual de cerca de 6% (talvez a maior do mundo, no período), enquanto sua renda per capita crescia a uma taxa média de 3,8%. Como resultado, no início do século XX, a Argentina estava entre os sete países mais ricos do mundo, e sua renda per capita era quatro vezes maior que a dos brasileiros, e o dobro da dos norte-americanos.
Nesse período, seu crescimento econômico foi liderado pela exportação de bens primários, mas se deu também na indústria, e contou com os investimentos na construção da rede ferroviária que integrou o seu mercado nacional, antes do fim do século XIX. Ao redor de 64% da sua população trabalhava na indústria, comércio ou setor de serviços, e um terço dos argentinos viviam em Buenos Aires, uma cidade com alto nível educacional e cultural. Ou seja, na altura da Primeira Guerra Mundial, a Argentina era o país mais rico do continente latino-americano e tinha todas as condições para se transformar na sua potência hegemônica, e talvez, numa potência econômica mundial. Mas não foi isto que aconteceu, sobretudo depois de 1930, apesar de que sua economia tenha seguido crescendo e se industrializando, e que sua sociedade tenha seguido enriquecendo e melhorando sua qualidade de vida. Mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, a economia argentina cresceu a uma taxa média de 3,78%, entre 1950 e 1973; e de 2,06%, entre 1973 e 1998.
Depois de 1930, entretanto, seu crescimento se deu de forma cada vez mais instável, através de ciclos cada vez mais curtos e intensos. Raul Prebisch atribuiu essa inflexão às mudanças internacionais, e à forma como operava o novo “centro cíclico” da economia mundial, os EUA, somadas à fragilidade industrial endógena das economias “primário-exportadoras”. Mais tarde, os ortodoxos e neoliberais atribuíram a culpa dessa mudança de rumo argentina às políticas econômicas populistas do governo Juan Domingos Perón, apesar de que Perón só tenha governado entre 1945 e 1955, e entre 1973 e 1974.
Existe, entretanto, outra maneira de olhar para a história da Argentina, entre a Revolução de 25 de Maio de 1810, e a destituição do presidente Hipólito Yrigoyen, no dia 6 de setembro de 1930, início do que os argentinos chamam de sua “década infame”. Depois da Guerra da Independência (1810 e 1816), a Argentina viveu meio século de guerra civil quase permanente, até a assinatura da Constituição de 1853, que criou o Estado Nacional da Argentina. Mesmo contra a resistência de Buenos Aires, que só se submeteu definitivamente em 1862. Depois disto, a Argentina participou da Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, e logo em seguida o Estado argentino iniciou suas guerras de “Conquista do Deserto”, que duraram toda a década de 1870. A conquista militar do “oeste argentino” permitiu a expansão/ocupação econômica contínua de novos territórios, até o fim da década de 1920.
Por isso, se pode dizer que o Estado “liberal” argentino nasceu de uma guerra civil que durou meio século e se consolidou através de uma estratégia expansiva de ocupação de novos territórios que durou mais meio século, financiada pelo sucesso do seu “modelo primário-exportador”. E foi exatamente no fim dessa expansão que se instalou a crise política responsável pela desorganização periódica do Estado e pela polarização definitiva da sociedade argentina.
Durante as ditaduras militares argentinas dos anos 50 e 60, seus vários governos praticaram políticas econômicas keynesianas e chegaram mesmo a iniciar um ambicioso programa de industrialização, idealizado pelo próprio Raul Prebisch. O que lhes faltou, entretanto, foi uma nova estratégia expansiva e de longo prazo, e um grupo capaz de transformar a economia argentina num instrumento de sua própria acumulação de poder internacional. Depois, a sangrenta ditadura militar entre 1976 e 1983 optou pelo caminho do ultraliberalismo, e ficou marcada pela política econômica do seu ministro Martines de Hoz, que foi ministro da Economia do governo ditatorial de Jorge Videla, entre 1976 e 1981. E após o fim da ditadura, o governo de Carlos Menem e seu ministro da Fazenda, Domingos Cavallo, tentaram uma vez mais levar à frente uma política econômica de dolarização e transformação ultraliberal da economia argentina. Fracassaram, e a cada novo fracasso destas tentativas ultraliberais, a Argentina optou de novo por um projeto alternativo de construção de um país soberano, as vezes identificado com o peronismo, apesar de que fosse peronista o governo ultraliberal de Carlos Menem e Domingo Cavallo. Mas este projeto alternativo ao neoliberalismo nunca logrou ser formulado plenamente, nem tampouco teve sucesso imediato, provocando um movimento de tipo pendular, como se fosse uma gangorra que ora aponta para um horizonte ultraliberal, ora aponta para um horizonte mais nacionalista, sem que nenhum dos projetos tenha conseguido tirar a Argentina de sua prolongada crise política.
E agora de novo, nas próximas eleições de outubro, a Argentina parece estar repetindo seu velho movimento pendular, atraída uma vez mais por uma proposta ultraliberal cada vez mais radical. Mas a Argentina ainda tem a oportunidade de escolher novo caminho diferente, optando por uma nova estratégia econômica, e uma nova estratégia de inserção internacional que lhe está sendo oferecida pela sua aceitação no grupo do BRICS, a partir de 2014. E tudo indica que este será o grande tema, e o grande ponto de clivagem, da campanha eleitoral argentina, até o dia 22 de outubro. Na verdade, será a primeira grande batalha entre o G7, e sua “camisa de força financeira”, e a o novo “projeto desenvolvimentista global”, proposto pelo BRICS + e seu Banco de Desenvolvimento.
A AMEAÇA À SEGURANÇA ALIMENTAR
Por Georges Flexor, Nelson G. Delgado e Karina Y. Kato
pós um longo período de declínio, a insegurança alimentar voltou a crescer desde o início da pandemia. Segundo o relatório das Nações Unidas sobre o estado da segurança alimentar e nutricional (UNICEF, 2023), a fome global, medida pela prevalência de subnutrição (PoU) (Indicador ODS 2.1.1), ainda que tenha permanecido relativamente inalterada de 2021 a 2022, está muito acima dos níveis pré-pandêmicos da COVID-19, afetando cerca de 9,2% da população mundial em 2022, contra 7,9% em 2019. Um dos principais fatores responsáveis pela deterioração do estado da segurança alimentar no mundo, nesses últimos anos, foi a alta dos preços dos alimentos.
Como indica a figura 1, os preços das principais commodities agrícolas tiveram altas expressivas entre o início da pandemia e meados de 2022. Entre março de 2020 e junho de 2022, as cotações da tonelada de soja dobraram (+94,52%), assim como as de milho (+107%). O índice de preços da carne vermelha também se valorizou de forma significativa (+ 37%). O valor da tonelada de arroz, uma commodity alimentar bem menos transacionada nos mercados internacionais, subiu no primeiro ano da pandemia (+12%), mas a cotação caiu na segunda metade de 2021.
O comportamento mais crítico dos preços ocorreu no mercado de trigo, commodity fundamental na dieta de bilhões de pessoas e um dos produtos agrícolas mais importantes no comércio internacional, cuja oferta de exportações depende sobremaneira da produção russa e ucraniana. Após ter subido 103% entre o começo da pandemia e fevereiro de 2022, as cotações de trigo cresceram ainda mais (+27%) nos três meses seguintes ao início da invasão da Ucrania. A pandemia e a guerra impactaram igualmente as cotações do óleo de Girassol, uma commodity para a qual a produção ucraniana é fundamental.
Num contexto de crise econômica provocada pela pandemia e seus efeitos deletérios sobre o emprego e os rendimentos das pessoas, principalmente as mais pobres, o curto ciclo de preços – com uma elevação rápida e intensa – desencadeou uma série de crises alimentares.
Figura 1 – Índices de preços alimentares do Fundo Monetário Internacional (IMF) 2020/23

Na África, por exemplo, a elevação dos preços do trigo e do arroz afetou muitos paises dependentes das importações desses cereais como Egito, Sudão, Etiópia, Algéria, Nigéria, Costa do Marfim e Marrocos. O comportamento das cotações do trigo impactou também o custo de vida nos tradicionais importadores do Oriente Médio, desencadeando revoltas populares como, por exemplo, no Irã em maio de 2022. O aumento das cotações internacionais do óleo de girassol, de 174% entre março de 2020 e maio de 2022, teve igualmente consequencias sociais bastante negativas, estimulando revoltas decorrentes da inflação dos alimentos em paises como Bangladesh (dezembro de 2022). A isso somou-se a forte valorização da soja e do milho, e seus reflexos sobre os preços das proteínas animais, com consequências bastante negativas sobre a segurança alimentar em quase todas as regiões do mundo.
Esse ciclo de preços resultou, em grande parte, de fatores afetando a oferta, como custos logísticos e custos de produção. O comportamento dos índices medindo o custo do frete marítimo (Baltic Dry Index) e de insumos agrícolas fundamentais como o cloreto de potássio e o fosfato (figura 2) mostra como a pandemia desorganizou o comércio mundial, como a partir do final de 2021 as condições logísticas começaram a se recuperar e como a guerra na Ucrânia impactou os custos de produção do trigo e do óleo de girassol.
O custo do frete marítimo, por exemplo, cresceu 725% entre março de 2020 e setembro de 2021! Após ter caído significativamente até janeiro de 2022, voltou a aumentar, porém de modo não tão dramático. A guerra na Ucrania, sobretudo, impactou sobremaneira os preços do cloreto de potássio e, em menor medida, do fosfato. Ao prejudicar as exportações desses insumos pela Rússia e a Bielorrússia, segundo e terceiro exportadores mundiais de potássio, a guerra provocou um aumento dramático dos preços desses insumos. O índice de preços do potássio, por exemplo, aumentou mais de 200% entre janeiro e novembro de 2022. Nesse mesmo intervalo de tempo, as cotações de fosfato cresceram 87%.
A partir de meados de 2022 as capacidades logísticas começaram a se recuperar e a oferta de exportação de insumos agrícolas se reorganizou, evitando dessa forma a materialização de um cenário dramático do lado da oferta e estimulando as cotações das commodities agrícolas mencionadas na Figura 1 (com exceção do arroz) a iniciarem um movimento de baixa.
No final de julho de 2023, a decisão da Rússia de não prolongar o acordo de liberação do comércio de grãos no Mar Negro – Black Sea Initiative de julho de 2022 – gerou temores de que um novo ciclo expansivo dos preços das commodities possa voltar a se formar. Nas semanas que seguiram, no entanto, não houve sinais de que ele esteja em andamento. É provável que os mercados mundiais de commodities estejam, dessa vez, muito mais capazes de lidar como os estresses geopolíticos provocados pelo conflito na Ucrânia.
Figura 2 – Índices de preços do frete marítimo e de insumos agrícolas
Para além desse comportamento recente dos preços alimentares, importa também destacar temporalidades mais longas quando se pretende “pensar” em cenários a respeito do futuro alimentar e suas implicações geopolíticas. As mudanças climáticas despontam como a maior ameaça à segurança alimentar mundial e seus efeitos já estão presentes. Parte da recente crise alimentar foi causada por perdas agrícolas derivadas de secas extremas – na África do Norte, no Oriente Médio, na África do Leste e na América do Norte – de intensificação sem precedentes do calor na Índia e nos países do Cone Sul ou de enchentes devastadoras no Paquistão e na Australia. O fato de que o desvio padrão (uma proxy da volatilidade) dos índices de preços alimentares na década passada esteja bem superior àquele observado na década de 1990, por exemplo, sinaliza que as condições climáticas já estão afetando a formação dos preços nos mercados alimentares. O Índice Padronizado de Precipitação-Evapotranspiração (SPEI) elaborado pelo Global Drought Monitor (https://spei.csic.es/index.html) sinaliza também que as mudanças climáticas estão criando contextos alimentares bem mais incertos e ameaçadores à segurança alimentar global. Numa situação em que melhorias rápidas da segurança alimentar global se tornaram mais difíceis de alcançar, porque não se pode mais contar com a China para puxá-las, "pensar" o futuro do contexto alimentar global é um desafio multidimensional considerável, onde a geopolítica mundial, as mudanças climáticas e o comportamento das corporações transnacionais exigem atenção particular.
O DESCONTROLE CLIMÁTICO
Por Clarice Menezes Vieira
Parece ironia que a Conferência da ONU sobre o Clima deste ano de 2023 (a 28ª Conferencias das Partes, ou apenas COP-28) vá ocorrer em Dubai, capital de um dos maiores exportadores de combustíveis fósseis do mundo; e que seja presidida pelo CEO da Abu Dhabi National Oil Company, a estatal petrolífera dos Emirados Árabes Unidos (EAU). Pesa sobre ela não apenas o acúmulo de ocorrências climáticas extremas quase diárias, mas também a notícia, em julho, do recorde para a mais alta temperatura registrada na Terra.
Segundo os cálculos do último relatório lançado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), em março de 2023, que incorporam os compromissos de redução de emissões de gases do efeito estufa declarados pelos países em 2021 (as iNDCs, Intended Nationally Determined Contributions), é “provável” que a temperatura aumente em mais do que 1,5ºC até 2050 (relativamente aos valores médios pré-industriais); e “dificilmente” se manterá abaixo de 2ºC até o fim do século. O IPCC já havia estabelecido em 2ºC o limite para que fossem evitadas as consequências mais dramáticas das mudanças climáticas. Com este cenário, portanto, além da frequência e da intensidade dos eventos extremos continuarem aumentando (enchentes, ampliação do volume de chuvas, estiagens prolongadas, incêndios florestais, intensificação de ciclones, entre outros), diversos pontos de inflexão (os climate tippings points – CTPs, ou seja, situações a partir das quais as mudanças climáticas tornam-se irreversíveis) serão atingidos, incluindo o derretimento das calotas polares da Groelândia e da Antártida.
Se os prognósticos ambientais são alarmantes, o histórico das conquistas obtidas no âmbito das Conferências do Clima em mais de três décadas de negociações só piora este quadro. De fato, a (in)capacidade da ONU em obter resultados concretos no tema do meio ambiente se assemelha ao padrão que a Organização obteve ao longo de sua história, ou seja, esses só foram possíveis quando os EUA e as demais potências acordaram previamente os termos dos acordos.
De fato, o imbróglio envolvendo o Protocolo de Kyoto, firmado em 1992, mas que só seria formalmente implementado em 2005, é um claro exemplo de como a pauta ambiental esteve submetida às disputas geopolíticas e geoeconômicas internacionais. O que parece inevitável, dado que o tema esbarra em um dos elementos nevrálgicos daquelas disputas, ou seja, a matriz energética. A dinâmica das negociações nas COPs, portanto, tendeu a reproduzir em linhas gerais a evolução dos grandes conflitos internacionais.
A partir de fins da primeira década do século XXI, quando a ordem interacional começa a se transformar, tanto por conta das disputas envolvendo EUA, China e Rússia, como em função do surgimento das chamadas “potências médias” e de novos blocos regionais, a complexidade da agenda ambiental vem se amplificando, enquanto diminuem as possibilidades de acordos no âmbito das COPs dado que suas deliberações necessitam de consenso.
Desde a instituição do arcabouço climático pós-Kyoto, com o Acordo de Paris de 2015, os países menos desenvolvidos vêm pressionando para que seja pautado de forma mais contundente o tema da adaptação, especialmente os mecanismos de financiamento e de transferência de tecnologia necessários para que possam lidar com as consequências do aquecimento global. A partir do caráter regional da adaptação (frente ao caráter global da mitigação), o tema desloca a agenda ambiental para as questões da pobreza e da desigualdade, especialmente considerando a desproporção dos efeitos das mudanças climáticas entre países pobres e ricos.
Na última Conferência, a COP-27 realizada em 2022 no Egito, os países menos desenvolvidos deram um passo além, tentando pautar separadamente o tema das perdas e danos, pois este aponta com ainda mais clareza para a transferência de recursos dos países ricos através da criação de fundos para indenizações e compensações, e, por sua vez, para o delicado assunto das reparações históricas. A Conferência aprovou a criação de um novo fundo, porém todas as decisões relativas às suas regras, inclusive quem realizará os aportes, foram adiadas para a COP-28 deste ano.
Como se já não bastassem todas estas dificuldades, a Guerra da Ucrânia, e a crise energética por ela disparada, engrossaram ainda mais o caldo das pressões colocadas sobre a questão ambiental. O aumento dos preços do petróleo e dos lucros das supermajors (ExxonMobil, Chevron, BP, Shell e Total) levou ao anúncio, no segundo semestre de 2023, da ampliação de seus investimentos em exploração e da concomitante diminuição dos compromissos de redução na produção de petróleo. Estima-se que a indústria de combustíveis fósseis seja responsável por 75% das emissões responsáveis pelo efeito estufa; e que somente a manutenção da infraestrutura atual de exploração eliminaria qualquer possibilidade de evitar aumentos superiores a 1,5ºC, exceto se a estes fossem incorporados sistemas efetivos de captura de carbono.
Além de sediada nos EAU e de presidida por um representante da indústria de petróleo, a COP-28 acontece no mesmo ano em que Emirado Árabes, Irã, Arábia Saudita (a maior fornecedora de petróleo para a China), Egito, Etiópia e Argentina ingressaram no BRICS; e que a Síria foi incluída na Liga Árabe e convidada para participar da Conferência. Não por acaso, portanto, ela vem sendo chamada de “COP do petróleo”. A proposta de eliminação gradual do uso de combustíveis fósseis, portanto, que chegou a ser apoiada por 80 países na COP-27, e que não foi incluída por ação do Grupo Árabe, da Rússia e da China, parece excluída de qualquer horizonte de possibilidades.
Enquanto os economistas seguem tentando convencer CEOs e governos da rentabilidade dos investimentos verdes, John Kerry, enviado especial do clima dos EUA, procura convencer o mundo de que as políticas públicas conduzidas pelo governo Biden, assim como as mudanças legislativas aprovadas no mandato de Biden, são caminhos possíveis para reverter o aquecimento global, cujos efeitos resistirão ao eventual retorno do Partido Republicando ao poder. Mas, como nenhum compromisso foi obtido em sua recente visita à China, e como a produção de petróleo segue batendo recordes históricos, estas apostas são, para dizer o mínimo, bastante improváveis.
O MUNDO MULTIPOLAR DA SAÚDE INTERNACIONAL
Por Maria Claudia Vater
No último mês vem sendo destaque, na imprensa e na mídia social, a reunião do G20 de 2023, realizada nos dias 9 e 10 de setembro em Nova Delhi, conquanto esvaziada pela ausência dos presidentes da China e da Rússia. Esse encontro parece ter se transformado num espaço de posicionamento dos países da “nova maioria global” em relação aos países do “ocidente anglo-europeu”. Os primeiros, mais preocupados com temas mais propositivos e estruturais do sistema interestatal capitalista, como a questão do clima, da desigualdade, da fome e da saúde internacional, enquanto os últimos mais direcionados em conseguirem apoio para a guerra da vez.
Neste sentido, chama atenção que a Organização Mundial da Saúde tenha realizado, nos dias 17 e 18 de agosto, na cidade de Gandhinagar, Gujarat, Índia, a “Primeira Cimeira Global da Medicina Tradicional (MT)”, em paralelo à reunião dos ministros de Saúde, entre as reuniões preparatórias do G 20. Participaram desta reunião o diretor-geral e os diretores regionais da OMS, os ministros da Saúde do G20 e convidados de alto nível de países das seis regiões da OMS. Participaram também cientistas, profissionais de saúde e membros de organizações da sociedade civil.
O programa de medicina tradicional da OMS começou em 1976 e hoje é praticado de forma oficial em inúmeros países da Ásia, da África e de outras partes do mundo, incluindo vários países pertencentes ao que hoje se chama de “ocidente reduzido”, o espaço preferencial da biomedicina baseada em evidências que nasceu junto com a “modernidade europeia”.
No relatório de 2019, do universo de 194 Estados-membros da OMS, 170 (87,6%) declararam utilizar medicina tradicional. Entre estes países, 113 reportaram a prática de acupuntura; 110, de ervas medicinais; e 109, de medicina tradicional indígena. A homeopatia e a medicina tradicional chinesa são utilizadas em 100 Estados-membros; a medicina Unani, por 82 países; e a medicina Ayurveda, em mais de 90, o mesmo número declarado para a naturopatia, quiroprática e osteopatia.
Por fim, a biodiversidade e o conhecimento indígena foram considerados pilares fundamentais da medicina tradicional, da saúde e do bem-estar, especialmente para os povos indígenas, reconhecendo-se que 80% da biodiversidade remanescente no mundo estão em territórios ou terras indígenas, enquanto a conservação da biodiversidade é uma questão fundamental relacionada com o uso sustentável de medicamentos tradicionais.
As discussões giraram em torno às contribuições do conhecimento indígena e da medicina tradicional para o bem-estar das sociedades e economias atuais. Analisou-se a forma como a inteligência artificial (IA) revolucionou o estudo e a prática dos sistemas de cura tradicionais e permitiu aos investigadores explorarem o extenso conhecimento médico tradicional, identificando tendências outrora difíceis de serem explicadas pela biomedicina. “A medicina tradicional pode desempenhar um papel importante e catalisador na consecução do objetivo da cobertura universal de saúde e no cumprimento das metas globais relacionadas com a saúde [...]”,(*) disse o Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS. Ao mesmo tempo, “este avanço da ciência na medicina tradicional deve obedecer aos mesmos padrões rigorosos que em outras áreas da saúde. Isto pode exigir um novo pensamento sobre as metodologias para abordar estas abordagens mais holísticas e contextuais e fornecer evidências que sejam suficientemente conclusivas e robustas para levar a recomendações políticas”,(*) segundo o Dr. John Reeder, diretor do Programa Especial da OMS para Pesquisa e Treinamento em Doenças Tropicais e Diretor do Departamento de Pesquisa em Saúde.
A reunião dessa Primeira Cimeira explorou a investigação e a avaliação da medicina tradicional, incluindo metodologias que podem ser utilizadas para desenvolver uma agenda de investigação global e prioridades, bem como desafios e oportunidades baseados em 25 anos de investigação em medicina tradicional. O objetivo é promover revisões sistemáticas da medicina tradicional e da saúde, mapas de evidências de eficácia clínica e um mapa de investigação global de inteligência artificial sobre a medicina tradicional.
Hans Kluge, diretor regional da OMS para a Europa, destacou no seu discurso de encerramento, que “Juntos, abalamos suavemente o status quo que, durante demasiado tempo, separou diferentes abordagens de medicina e saúde.” [...] e iremos colaborar ainda mais para encontrar formas ideais de colocar a medicina tradicional, complementar e integrativa sob a égide dos cuidados de saúde primários e da cobertura universal de saúde. [...] Reiteramos como é crucial obter melhores evidências sobre a eficácia, segurança e qualidade da medicina tradicional e complementar. Isso significa metodologias inovadoras para avaliar e avaliar resultados”.(*)
A reunião da OMS permitiu também explorar as tendências regionais e discutir as melhores práticas, destacando a implementação do capítulo 26 sobre medicina tradicional na mais recente Classificação Internacional de Doenças, a CID-11, publicada em fevereiro de 2022.
Atualmente, a OMS está desenvolvendo o próximo módulo do capítulo da medicina tradicional, que incluirá termos de diagnóstico dos sistemas de medicina Ayurveda, Unani e Siddha.
Em 2022, com o apoio do governo da Índia, a OMS criou o Centro Global de Medicina Tradicional da OMS, em resposta ao crescente interesse e procura globais por medicina tradicional baseada em evidências. É o primeiro e único centro global da OMS dedicado à medicina tradicional com o objetivo de trabalhar em parcerias, estabelecer evidências e dados, orientar o uso sustentável da biodiversidade e estimular a inovação para otimizar a contribuição da medicina tradicional na cobertura universal de saúde e no desenvolvimento sustentável, guiado pelo respeito pelas heranças, recursos e direitos locais. Os resultados apoiarão o desenvolvimento de uma nova estratégia de medicina tradicional 2025-2034, solicitada pelos Estados-membros na Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2023.
A presidência indiana do G20 deu um grande destaque ao fato de que o primeiro-ministro e o governo da Índia tenham apoiado a criação desse Centro Global de Medicina Tradicional da OMS em Jamnagar, Gujarat, Índia, como um bem global. Trata-se de um movimento indiano que coincide com a ampliação recente do grupo do BRICS, que incorporou seis novos países-membros na sua última reunião de Joanesburgo. E também, junto com esses países, as tradicionais culturais e civilizatórias não europeias – egípcia, persa, etíope e árabe – ao lado das civilizações chinesa e indiana, que já faziam parte do mesmo grupo.
Isso é motivo suficiente para que se possa pensar que os Estados nacionais que ascenderam na nova ordem mundial já estão solicitando passagem para suas racionalidades terapêuticas, numa visão multipolar do que seja saúde e bem-estar para todos, muito além da categoria de análise “doença”, conceito estruturante do programa de pesquisa científica proposto pelos anglo-europeus no século XIX – também conhecido como o século britânico.
Numa clave simbólica, é como se, em Gujarat, estado de nascimento de Gandhi e onde aconteceu a Dandi Satyagraha, ou a Marcha do Sal, a OMS estivesse, nesse momento, anunciando ao planeta a passagem de um movimento global de afirmação de formas e práticas medicinais que estiveram colocadas na sombra nos últimos três séculos de hegemonia mundial de origem europeia.
O G-20 E O DECLÍNIO DO “MULTILATERALISMO OCIDENTAL”
Por Andres Ferrari e José Luís Fiori
Na recente cúpula do G20 na Índia não estiveram presentes os líderes máximos da China nem da Rússia. E não há dúvida de que essa ausência colocou em questão os limites de um grupo que vai sendo esvaziado pelo aumento da intensidade dos conflitos que dividem seus membros neste momento. E a prova mais palpável desta perda de legitimidade e de eficácia foi sua declaração final, anódina e sem compromissos reais entre seus participantes.
Foi a primeira vez que um presidente chinês não compareceu à cúpula de líderes desde seu início, em 2008. Alguns explicaram a ausência de Xi Jinping por certas tensões entre a China e a Índia, devido às disputas fronteiriças que resultaram em um breve conflito entre suas tropas em 2020, e pela recente publicação, na China, de um mapa que reivindica todo o seu território em disputa. No entanto, a China participou da recente cúpula virtual, organizada pela Índia, da Organização de Cooperação de Xangai, na qual seus Estados-membros "acordaram os contornos da ordem mundial emergente". As mesmas postura e relação que mantiveram a Índia e a China – uma visão que continuou dias atrás durante a reunião dos BRICS+ na África do Sul, onde Xi Jinping e Narendra Modi, o primeiro-ministro da Índia, se encontraram separadamente para discutir e acordar a declaração final desse evento. Assim, apesar dos conflitos bilaterais, ambos os países parecem compartilhar a visão de colaborar na formação de uma nova ordem global diferente da ocidental.
Portanto, a despeito das inúmeras tentativas de criar fissuras e atritos entre os membros da “nova maioria global”, todos os movimentos dos dois países sugerem que, em última instância, Índia e China compartilham uma mesma visão crítica a respeito da “ordem baseada em normas” criada e tutelada pelas potências euro-americanas. É esta posição crítica que explica que, apesar das pressões, os dois países asiáticos tenham se mantido firmes em não conceder um convite ao líder ucraniano Volodymyr Zelensky para a Cúpula do G20. A Índia argumentou que o G20 foi criado para que os países deliberem sobre questões econômicas e financeiras globais, e não é um fórum para questões geopolíticas, ao contrário da posição defendida pelos Estados Unidos e pelo G7.
Nessa reunião, e pela primeira vez, a Índia refere-se a si mesmo nos documentos oficiais desta reunião como Bharat – expressão contemplada no primeiro artigo de sua Constituição, de 1950, e que é a designação para a Índia em algumas línguas do país, como o sânscrito. Embora não tenha havido explicações oficiais a respeito, não há a menor dúvida de que esta foi uma forma – talvez a mais radical e “ghandiana” – de romper seus últimos laços com a Grã-Bretanha, sua antiga potência colonial. Fontes próximas ao governo afirmaram explicitamente que este foi um movimento a favor de uma designação não colonial, em contraste com o nome "Índia", vinculado ao Império Britânico. Além das disputas internas, mediante a nova nomenclatura, a Índia quer sugerir que superou a mentalidade colonial e agora se posiciona como um dos grandes líderes da nova ordem internacional que está sendo proposta e desenhada progressivamente pela “nova maioria global”.
O primeiro-ministro Modi enfatizou o crescimento inclusivo como uma das prioridades da presidência do G20 do país. Apresentou o modelo “Sabka Saath Sabka Vikas”, que significa “desenvolvimento para todos”, afirmando que "independentemente do tamanho do PIB, cada voz importa". Por isso, ele afirma ter colocado as preocupações do “Sul Global” – escassez de alimentos e fertilizantes – como principais objetivos para o G20. A Índia já se posicionou assim em janeiro, quando convocou quase 125 países em desenvolvimento para a Cúpula da Voz do Sul Global, para discutir a questão da falta de alimentos. Também concordou com os demais membros dos BRICS+ na declaração de Johannesburgo II, ao expressar preocupação com as medidas restritivas ao comércio que são incompatíveis com as normas da OMC, incluindo medidas unilaterais ilegais, como as sanções que afetam o comércio agrícola – esta última frase diretamente dirigida às sanções contra a Rússia devido à Ucrânia.
A Índia, juntamente com o Brasil, é uma das vozes mais críticas da velha ordem tutelada pelos países do chamado “ocidente restrito”, que priorizam a transição energética por questões climáticas em detrimento da questão da “desigualdade” e das necessidades mais urgentes dos países pobres. Ambos os países também alertam para o fato de que as antigas potências ocidentais não têm cumprido os compromissos assumidos.
Não apenas a China se manifestou de forma semelhante repetidamente, mas a Rússia, cujo presidente Putin foi o outro grande ausente no G20. O ministro das Relações Exteriores russo, Lavrov, declarou no encontro dos BRICS que "as promessas ocidentais de ajudar os países africanos – no valor de 10 bilhões de dólares por ano – simplesmente foram esquecidas, no contexto da generosa ajuda ocidental a Kiev”.
Deve-se lembrar aqui a importância histórica e econômica da Rússia para a Índia: os dois países têm vínculos militares e estratégicos muito sólidos, que a Índia vem preservando a despeito de todas as pressões e vantagens que vêm sendo oferecidas insistentemente pelos Estados Unidos. Além disso, a Índia aumentou significativamente suas importações russas, sobretudo de petróleo, após as sanções impostas à Rússia por um grupo de 40 países liderados pelos Estados Unidos, quase todos pertencentes ao velho eixo euro-americano. Por tudo isso, é muito difícil imaginar que a Índia rompa com a Rússia, a despeito de que sua movimentação estratégica não se restrinja a suas alianças e acordos asiáticos.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, colocou o “dedo na ferida” que esvaziou a reunião de Nova Delhi, ao falar do desejo dos euro-americanos de "ucranizar" a reunião de Nova Dehli, buscando inserir o tema da Ucrânia em cada questão – inclusive na Declaração final – algo que a Rússia não aceitaria. Os líderes ocidentais acreditavam na possibilidade de isolar os russos e de pressioná-los, a fim de aceitarem incluir a questão da Ucrânia, mas isto não aconteceu: a Rússia não só não foi isolada como conseguiu fazer prevalecer sua oposição na declaração final da reunião. O resultado desse complexo embate diplomático foi uma declaração branda, para dizer o mínimo, que não condenou a conduta de Moscou nem se rendeu à pressão euro-americana, mas reiterou o princípio da integralidade territorial das nações.
Esse “consenso mínimo” logrado na cúpula do G20 é o retrato fiel de um mundo dividido e fragmentado por uma verdadeira guerra econômica dos Estados Unidos contra a China, e por um enfrentamento militar direto da OTAN com a Rússia. Está chegando ao fim o multilateralismo ocidental, sacramentado pela afirmação do presidente Lula, numa entrevista paralela à reunião do G20, de que receberia no Brasil o presidente Putin, desconhecendo ordem do Tribunal Internacional criado pelos euro-americanos.















