Boletim nº 14 (novembro de 2025)
SUMÁRIO
O DECLÍNIO DO VELHO CONTINENTE
A DECADÊNCIA ECONÔMICA EUROPEIA
O REARMAMENTO E MILITARIZAÇÃO DA EUROPA
A DESIGUALDADE ENTRE OS EUROPEUS
A POSIÇÃO RUSSA FACE AO BELICISMO EUROPEU
O PONTO DE “NÃO RETORNO” DA DESDOLARIZAÇÃO
O MOMENTO EM QUE A CHINA “VIROU O JOGO”
A GEOPOLÍTICA DAS TERRAS-RARAS
A GEOPOLÍTICA DA FOME E DO CLIMA
ARGENTINA, UM PAÍS EM ESTADO DE “FALÊNCIA CRÔNICA”
A MAIOR AMEAÇA VEM DA EUROPA
Por José Luís Fiori
No dia 10 de setembro de 2025, a presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, em seu discurso sobre o “estado da união” frente ao Parlamento Europeu, declarou que a “Europa está numa guerra”. E completou seu argumento dizendo que “as linhas de batalha por uma nova ordem mundial baseada no poder estão sendo traçadas, e a Europa precisa lutar por seus valores e pelo direito de escolher o seu destino”.1 E neste momento, este é o pensamento dominante da elite política e da grande imprensa europeia, conservadora e social-democrata. Todos consideram que a Rússia é uma ameaça iminente, e que a Europa deve se preparar para uma guerra inevitável no prazo máximo de uns 5 a 10 anos, e deve fazê-lo com suas próprias forças, sem contar com o apoio dos EUA. Muitos consideram que esta é a grande oportunidade, e talvez o único caminho possível para que a Europa possa recuperar sua posição perdida dentro do Sistema Internacional.
Essa visão dos europeus explica sua estratégia de prolongação da guerra na Ucrânia por um, dois e até cinco anos, tempo necessário para que a Europa possa se rearmar e se autonomizar do apoio militar norte-americano para enfrentar a guerra que a EU e a OTAN estão prevendo. O problema imediato, entretanto, é que se não houver uma negociação de paz, a Rússia deve vencer a guerra no campo de batalha em muito menos tempo do que os europeus estão programando. Além disso, segundo a opinião da maioria dos analistas militares, a Europa seguirá dependendo, por muitos anos, de alguns “suportes críticos” fornecidos pelos EUA, como é o caso da inteligência por satélites, dos foguetes de longo alcance, dos sistemas de defesa aérea, do transporte pesado e dos sistemas digitais que permitem a utilização simultânea de vários armamentos. Seriam necessários pelo menos dez anos de esforço concentrado da parte dos europeus, sobretudo se tivermos em conta que a França e a Inglaterra se encontram sem recursos e em situação quase falimentar, enquanto a economia alemã está estagnada há cinco anos e enfrenta um acelerado processo de desindustrialização, graças à suspensão europeia de suas importações de petróleo e gás russos.
1 The Economist. Europe in a world of hostile strongman. Behind closed doors in Bruxels, a new mood of realism. October 25th, 2025, p. 52.
Neste momento, o panorama europeu é sombrio e existe no ar um maldisfarçado sentimento de derrota da União Europeia e da OTAN. No campo de batalha, as forças ucranianas estão sendo derrotadas de maneira implacável pelas tropas russas, apesar do enorme apoio financeiro, logístico e humano, e de todo o armamento de última geração que os europeus e a OTAN seguem fornecendo aos ucranianos. Soma-se a este sentimento de derrota o insucesso imediato do ataque econômico massivo arquitetado pelos EUA e pelos europeus, visando quebrar a espinha dorsal da economia russa e sua capacidade de seguir financiando sua guerra contra a Ucrânia.
Além disso, a União Europeia aparece dividida internamente, e já não existe mais consenso com relação à própria Guerra da Ucrânia, tendo em vista a posição dissidente da Hungria, que vem conquistando novos apoios nas eleições recentes realizadas na Eslováquia e na República Checa, além da oposição reticente da Sérvia e da própria Turquia dentro da OTAN. Apesar da intervenção cada vez explícita e direta de Bruxelas nas eleições dos países-membros, em favor de seus aliados locais partidários do belicismo de Bruxelas. Além disso, multiplicam-se as divergências internas com relação a outros assuntos, como no caso da apropriação europeia das reservas russas depositadas em bancos europeus, ou mesmo com relação ao novo “orçamento de guerra” proposto por Bruxelas.
Para driblar essas dissidências dentro da própria OTAN (sobretudo depois da reaproximação entre EUA e Rússia), a Inglaterra propôs a criação da “coalizão da boa vontade”, reunindo apenas os governos mais belicistas, e em particular a própria Inglaterra, a França e a Alemanha. Esta mesma coalizão, entretanto, aparece dividida e muito fraca, graças à oposição interna de suas populações. O primeiro-ministro inglês, Keir Starmer (que lidera essa “coalizão da boa vontade”), tem hoje apenas 13% de apoio da opinião pública inglesa, enquanto seu sócio direto, Emannuel Macron, está com 14% e preside um país que está praticamente sem governo. Por outro lado, o primeiro-ministro alemão, Friedrich Merz, que tomou posse faz pouco tempo tem apenas 20% de apoio, e sua coalizão de governo com os social-democratas está empatada nas pesquisas eleitorais com a AfD, partido de oposição de direita contrário à continuação da guerra, favorável a uma negociação com a Rússia e de oposição à linha atual da Comissão Europeia. E por fim, a Polônia também está dividida e rachada, com um presidente que não apoia a posição europeísta e belicista de seu primeiro-ministro.
De forma mais ampla, o que se constata é um sentimento generalizado de insatisfação das populações com relação aos seus governantes e às próprias instituições políticas europeias. Um quadro agravado pelo fato de que a Europa esteja hoje nas mãos de uma geração de dirigentes políticos extremamente medíocres, incapazes de formular alguma ideia ou algum projeto novo para a o Velho Continente, que não seja sua estratégia de volta à guerra, prática mais antiga e permanente dos europeus. Destacando-se o chanceler alemão por sua completa falta de carisma, sua ignorância internacional e sua absoluta incapacidade diplomática, num momento de tamanha gravidade, e dada a importância central da Alemanha no tabuleiro europeu, Por isso mesmo, hoje nenhum desses governantes tem capacidade hoje de mobilizar a juventude dos seus países para lutar na Ucrânia, ou para se alistarem para uma futura guerra contra a Rússia.
Em síntese, a Europa encontra-se estagnada, dividida e fragilizada, e suas elites política e intelectual estão tomadas pelo desejo de guerra e revanche contra a Rússia. Um ressentimento pela perda de sua força e influência imediatas, mas sobretudo pela perda do poder e da centralidade que tiveram dentro do Sistema Internacional nos últimos trezentos anos.
No início do século XVIII, o diplomata francês Abbé de Saint Pierre publicou uma obra fundamental na história das ideias e dos grandes debates internacionais, sobre a “guerra e a paz”.1 Foi ele que formulou, pela primeira vez, a tese de que uma das causas fundamentais de todas as guerras é o ressentimento dos derrotados e seu desejo de reconquistar a posição que perderam. Esta tese de Saint Pierre foi retomada posteriormente por vários outros autores, e foi corroborada pela história das guerras da Espanha e da França nos séculos XVIII e XIX; da Alemanha, nos séculos XIX e XX; e pela história mais recente da retomada do poder militar pela China e pela Rússia, nos séculos XX e XXI. E tudo indica que a grande candidata a ocupar a posição da “potência ressentida” dessa primeira metade do século seja a Europa.
O grande problema é que o ressentimento impede muitas vezes que se consiga fazer uma avaliação realista da correlação de forças existente em determinada situação de conflito. E é isto que está acontecendo com os governantes e comandantes militares europeus ao avaliarem sua força, neste momento, frente ao poder militar russo. Sobretudo depois que o presidente russo, Vladimir Putin anunciou, no dia 28 de outubro recém-passado, o teste bem-sucedido do míssil cruzeiro Burevestnik e do drone subaquático Poseidon, movidos a energia nuclear e com alcance ilimitado. Duas armas que os especialistas e estrategos militares de língua inglesa chamam de “game-changing weapon”. Ou seja, não há no mundo tecnologia equivalente ou armamento capaz de interceptar ou destruir esses mísseis, que já “sucatearam” antecipadamente o sistema antimísseis projetado por Donald Trump – seu Golden Dome – que ficará operacional apenas em 2030.
1 Abbé de Sasint Pierra. Projeto para tornar perpétua a paz na Europa. Brasília: Editora UnB, 2013, p. 35.
Muitos preferem acreditar que se trate de um blefe russo, mas todas as evidências indicam que os testes ocorreram e foram bem-sucedidos, e que hoje a assimetria do poder de fogo entre a OTAN e a Rússia é de tal ordem que um erro de cálculo dos europeus poderá significar o desaparecimento da própria Europa, com efeitos catastróficos para o “resto da humanidade”. E a obsessão belicista dos atuais governantes europeus sugere que eles estão dispostos a “pagar para ver”.
O DECLÍNIO DO VELHO CONTINENTE
Por Andrés Ferrari
O primeiro-ministro polonês, Donald Tusk, declarou que Putin tem o poder de destruir não apenas a União Europeia, mas toda a Europa — e que também possui os meios para fazê-lo. As palavras de Tusk refletem a opinião de grande parte da elite e das autoridades europeias. Tusk afirmou que a guerra de Putin contra a Europa está se mostrando muito mais complexa do que o previsto, uma compreensão também compartilhada por outros líderes do continente.
De fato, desde que se percebeu a resiliência russa após o início da guerra, os líderes europeus passaram a declarar cada vez mais a necessidade de aumentar suas capacidades militares, enquanto a mídia tradicional divulgava reportagens sobre a necessidade de restabelecer o serviço militar obrigatório.
Recentemente, a União Europeia elaborou um plano de preparação para enfrentar a Rússia em 2030 e Ursula von der Leyen anunciou que o bloco pretende criar seu próprio serviço de inteligência, nos moldes da CIA, para fortalecer o papel de Bruxelas na coordenação das políticas de segurança e inteligência.
Além disso, como parte desse projeto de militarização europeia, o site de notícias Politico noticiou que, segundo documentos internos, a Alemanha planeja se rearmar para tornar a Bundeswehr “o exército convencional mais poderoso da Europa”, expandindo os gastos militares em US$ 440 bilhões — quase metade dos quais seria destinada a fabricantes de armas alemães. O plano também contempla gastos com satélites, drones, programas navais e espaciais e a compra de armamentos americanos.
O chanceler alemão Friedrich Merz declarou esses objetivos militares alemães em um discurso proferido logo após o mundo comemorar o 80º aniversário da queda do Terceiro Reich em maio — o que levou o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, a alertar que a UE como um todo estava deslizando para o que ele descreveu como um "Quarto Reich".
Lavrov estava bem ciente do significado da escolha do Industrie-Club como local para o ameaçador evento "Iniciativa Missão 2044", realizado em 21 de outubro, visto que fora ali, em fevereiro de 1932, que 650 líderes empresariais ouviram Adolf Hitler no que se revelou o prelúdio para a construção de uma economia de guerra. Este evento recente também reuniu representantes de empresas alemãs interessadas no rearme militar.
Entre os oradores pró-guerra estavam o ex-ministro das Relações Exteriores, Joschka Fischer, que afirmou que os alemães devem deixar de ser “pacifistas estruturais”, e o ex-vice-comandante supremo aliado da OTAN para a Transformação, Christian Badia, que foi ainda mais enfático: “A OTAN não é uma aliança defensiva e possui apenas armamento defensivo. Devemos passar à ofensiva”. Ele acrescentou que a sociedade deve estar preparada para isso porque, segundo Badia, “Devemos criar um dilema para a Rússia. A Rússia não pode sequer ser autorizada a considerar a possibilidade de atacar”.
No imediato, a Europa continua procurando enfraquecer a economia russa com novas proibições às importações de gás russo, em vigor a partir de 1º de janeiro de 2026. Este anúncio ocorreu após a reunião dos ministros de energia da UE em Bruxelas, onde aprovaram a proposta de eliminar completamente o petróleo e o gás russos até janeiro de 2028. O ministro de energia dinamarquês, Lars Aagaard, expressou sua satisfação com o apoio "esmagador" à medida, afirmando que "uma Europa independente em termos energéticos é uma Europa mais forte e mais segura".
Da mesma forma, Ursula von der Leyen, em seu discurso sobre o Estado da União em setembro, declarou: “Nossa União nasceu como um projeto de paz, mas o mundo é implacável… Uma nova Europa deve surgir”, uma nova Europa que deve “lutar por seu lugar no mundo” — embora tenha questionado os cidadãos europeus se eles estão preparados para lutar: “Temos a unidade, a urgência, a vontade política, ou permaneceremos paralisados por nossas lutas internas?”
Essa questão levantada pela Presidente da Comissão Europeia está negativamente relacionada às avaliações bastante baixas que as populações do continente têm de seus líderes — a começar por ela própria, que, segundo a pesquisa EuroPulse da Ipsos , tem apenas 23% de uma visão positiva de sua gestão, contra 36% de uma visão negativa.
Ela não é a única. De acordo à pesquisa de Morning Consul do 6 de novembro, a primeira-ministra suíça, Karin Keller-Sutter, tem o maior índice de aprovação, com 44%, sem nenhum outro candidato ultrapassando os 40%. O alemão Merz (29%), o britânico Starmer (23%) e o francês Macron (12%) registraram baixos índices de aprovação. O caso de Merz é sintomático do atual cenário na Europa,
já que o jornal Bild publicou uma pesquisa mostrando que 49% dos alemães acreditam que seu governo entrará em colapso antes do fim do mandato, em 2029, enquanto 66% têm uma opinião negativa.
A principal causa de insatisfação é o declínio econômico "dramático" da Alemanha, de acordo com o diretor do Instituto IFO , um dos principais centros de pesquisa econômica da Europa, cujo novo estudo mostra que a produção está estagnada desde 2018. Clemens Fuest , presidente do IFO, argumentou que a Alemanha está à beira da “italianische Verhaltnisse”, termo que se refere a uma situação semelhante à da Itália, cuja economia estaria historicamente caracterizada pela fragilidade crônica, estagnação e ineficiência estrutural.
De fato, o próprio Merz admitiu em agosto que a economia estava em uma “crise estrutural” e que grandes setores “já não eram verdadeiramente competitivos”. No entanto, como já foi mencionado, ele se juntou ao coro de líderes da UE que priorizam os gastos com a remilitarização europeia — o que implicaria novos cortes nos gastos sociais e previdenciários, contrariando as demandas daqueles que pedem maiores verbas para esses programas, a fim de reinvestir na capacidade produtiva.
E, no que poderá ser o golpe final para a Europa, está a política de manter um confronto com a Rússia, que implica cortar as importações de sua energia barata. Essa decisão, além de potencialmente intensificar os conflitos sociais internos, pode até levar à desintegração da própria UE, já que há membros como a Eslováquia, cujo primeiro-ministro, Robert Fico, afirmou que o bloco está se "dando um tiro no próprio pé" ao tentar eliminar gradualmente a energia russa.
A posição da Hungria é ainda mais extrema. De acordo com o Ministro das Relações Exteriores e Comércio, Peter Szijjarto, em declaração recente no fórum da Semana de Energia Russa em Moscou, o país não tem intenção de abrir mão do gás e do petróleo russos.
O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, postando na rede X, foi ainda mais crítico, denunciando que seu país se oporá a todas as decisões recentes da UE porque "elas demonstram claramente que o povo de Bruxelas quer entrar em guerra" contra a Rússia.
A DECADÊNCIA ECONÔMICA EUROPEIA
Por Mirelli Malaguti
O sistema interestatal capitalista atual nasceu na Europa, de onde as potências desse continente expandiram seu poder e instituições pelo mundo e estabeleceram a Ordem Mundial moderno. Hoje, essa ordem encontra o declínio militar, econômico e moral dessas antigas potências europeias, enquanto se observa o enfraquecimento relativo dos Estados Unidos—sucessor e liderança desse projeto europeu— que vem perdendo influência e legitimidade na Ordem Internacional.
Mas é importante destacar que a forte queda econômica europeia nestes últimos anos já constitui seu principal problema da Europa para recuperar importância no atual sistema de nações e potências. Assim, com a sua perda de relevância econômica global, a Europa também está perdendo centralidade em questões militares, políticas, sociais e culturais, refletindo a mudança do eixo do mundo para fora dela — o que representa, nesse sentido, a maior novidade histórica até hoje nas modernas relações internacionais.
A economia da União Europeia cresceu somente 0,9% em 2024, após uma expansão mínima de 0,4% no ano anterior. O crescimento do PIB em toda a União Europeia teve uma média de 1,6% de 1996 até 2024, atingindo o pico de 6,30 por cento em 2021 e o mínimo recorde de -5,60 por cento em 2020.
O Euro introduziu tensões de política económica entre os países membros, por meio da imposição de uma moeda única sem mecanismos de transferências fiscais equivalentes ou de completa união bancária. Desde a crise financeira de 2008, a zona do Euro passou a enfrentar desafios crescentes em sua integração econômica e governança monetária.
A reação à crise privilegiou a austeridade fiscal, com efeitos recessivos. As instituições da UE e da Zona Euro também foram forçadas a evoluir: criação de mecanismos como o European Stability Mechanism (ESM), nova supervisão bancária e reformas no pacto fiscal. A crise resultou em forte recessão na Europa, especialmente entre 2009-2013, com queda do PIB, aumento do desemprego, especialmente entre jovens, e desequilíbrios regionais profundos. Politicamente, a crise gerou tensão entre membros da UE, aumento de euroscepticismo, pressão por reconfigurações institucionais, e debates sobre soberania, integração e solidariedade europeia.
A UE apresenta debilidades persistentes em inovação, produtividade e integração financeira. Desde 2008, o PIB per capita europeu recuou cerca de 10 p.p. em relação aos EUA. A Europa depende de importações para cerca de 80% de seus produtos digitais, e mantém mercados de capitais fragmentados, o que limita o financiamento de empresas inovadoras e a escala tecnológica necessária para competir globalmente. O ascendente domínio econômico da China sobre cadeias de suprimentos críticas, como semicondutores, inteligência artificial e minerais estratégicos, aprofunda a dependência e vulnerabilidade tecnológica do continente.
Impactos Econômicos da Guerra da Ucrânia sobre a União Europeia
A guerra da Ucrânia desencadeou a maior crise energética da Europa desde 1973, com o corte abrupto do gás russo — responsável por 40% do consumo europeu —, o que elevou o preço do gás em mais de 700% e levou a uma inflação recorde de 10,6% em 2022.
A indústria, especialmente Alemã e Italiana, sofreu retração acentuada, resultando em recessão técnica e perda de competitividade, com realocação de empresas para países com energia mais barata.
O Banco Central Europeu respondeu com forte alta de juros (de –0,5% para 4%), encarecendo o crédito e desacelerando a economia. Governos lançaram pacotes de apoio energético e militar superiores a €700 bilhões, ampliando o endividamento público (média de 88% do PIB).
Socialmente, o aumento do custo de vida provocou protestos e polarização política, fortalecendo forças populistas e eurocéticas em vários países da UE.
Nesse sentido, a Guerra da Ucrânia é vista como uma força do processo de intensificação da desindustrialização e queda de produtividade da indústria européia. O caso alemão é mais emblemático: a produção econômica da Alemanha está estagnada desde 2018 e o investimento corporativo em máquinas e fábricas caiu abaixo dos níveis de 2015.
A remilitarização européia
Nesse contexto, a Otan estabeleceu um acordo para aumentar os gastos militares para 5% de cada PIB nacional, buscando um reposicionamento estratégico e econômico por meio do investimento em Defesa conceito que inclui resiliência, segurança cibernética e infraestrutura crítica — até 2035. O consenso político é alavancar os gastos com defesa para superar essas fragilidades estruturais e garantir a autonomia estratégica. Diante da convergência entre vulnerabilidades estruturais e ameaças geopolíticas, consolida-se na Europa um consenso político em torno da defesa como vetor de reindustrialização, soberania tecnológica e autonomia estratégica.
Para atender às metas coletivas, a UE projeta a mobilização adicional de cerca de € 800 bilhões até 2030, distribuídos entre programas de modernização militar, inovação tecnológica e fortalecimento da base industrial de defesa. Alemanha: anunciou um aumento acumulado de 104% nos gastos de defesa, alcançando cerca de € 153 bilhões até 2029, superando pela primeira vez o marco histórico de 2% do PIB. França: busca atingir 3,5% do PIB, mas enfrenta restrições fiscais estruturais que limitam o ritmo de expansão orçamentária. Polônia: desponta como um dos casos mais agressivos, aproximando-se rapidamente da meta de 4% do PIB, consolidando-se como potência militar regional.
A União Europeia busca construir uma Base Industrial e Tecnológica de Defesa (BITD) sólida, capaz de garantir autonomia estratégica e fortalecer a competitividade tecnológica. A estratégia visa criar uma produção inteligente, escalável e de baixo custo, baseada em automação, digitalização e inteligência artificial.
Diante da fragmentação e da dependência de pequenas e médias empresas, a UE aposta na consolidação industrial e no controle estratégico de ativos sensíveis, como mostrou o veto francês à venda da Photonis a um grupo americano. O paradigma da “Nova Defesa” integra inovação civil e militar, com tecnologias de uso duplo (IA, drones, espaço, cibersegurança), transformando o setor em motor de crescimento e inovação sustentável.
A Alemanha planeja um ambicioso pacote de €377 bilhões para expandir e modernizar suas forças armadas — parte de um esforço de remilitarização em escala europeia. O plano inclui cerca de 320 novos projetos para as forças terrestres, aéreas, navais, espaciais e cibernéticas, destinando metade dos recursos à indústria nacional de defesa, com destaque para a Rheinmetall e a Diehl Defence.
Estão previstos investimentos em tanques, sistemas de defesa aérea, satélites, drones e caças F-35, além de mísseis Tomahawk.
Berlim alterou suas regras fiscais para permitir gastos militares de longo prazo, além do fundo especial de €100 bilhões criados em 2022.
O chanceler Friedrich Merz prometeu tornar a Bundeswehr o “exército convencional mais forte da Europa” até 2029, justificando o rearmamento com a ameaça russa — acusação que Moscou classificou como “sem sentido”.
Esse reforço ocorre em meio a um cenário econômico adverso, com crescimento estagnado e declínio industrial, refletindo a tentativa da Europa de transformar os gastos em defesa em motor de soberania tecnológica e recuperação econômica.
A velha estratégia da máquina de guerra
As elites europeias, confortáveis por trás da segurança do espartilho do euro combinado com a austeridade fiscal, alinharam-se aos movimentos dos Estados Unidos sem objetivos próprios relevantes. Em particular, com as sanções à Rússia após a guerra na Ucrânia, cortaram alegremente o fornecimento de gás russo — vital para a sua economia e para a vida social. A prolongação desse conflito já se faz sentir nos níveis de vida de uma população europeia fortemente golpeada pelos impactos da crise de 2008 e da Covid-19.
Enquanto Trump demonstra pouco interesse pelos problemas europeus e ignora em grande medida a Europa, as elites europeias passaram a promover uma forte militarização — que impactará negativamente a vida das populações — na tentativa de recuperar a sua relevância global original. Em definitivo, trata-se de uma aposta na velha estratégia da máquina de guerra.
O REARMAMENTO E MILITARIZAÇÃO DA EUROPA
Por Daniel Barreiros
Sem que se entre no mérito da questão, a percepção de risco existencial por parte dos estadistas europeus diante da Guerra Russo-Ucraniana vem funcionando como um catalisador geopolítico. Mais do que uma bem ponderada percepção de risco, é a narrativa de ameaça que parece fornecer o combustível para as decisões políticas em torno do rearmamento europeu. A despeito da premissa unionista em torno da comunidade europeia, o alinhamento dos interesses nacionais no bloco quase nunca é simples; e nesse caso, o controle da linguagem, das categorias e do modo pelo qual a ameaça moscovita aparece no discurso político e midiático tem vindo a calhar. Imaginem o tamanho do desafio de legitimar decisões políticas e financeiras armamentistas, altamente impopulares em tempos de paz, quando as atenções estão voltadas para temas imediatamente sensíveis como imigração e taxas de crescimento econômico modestas; imaginem ainda a titânica necessidade de integrar uma estrutura de defesa que, a despeito da presença da OTAN, encontra-se fragmentada. Nada como ter os hunos batendo à porta para se tirar um paquiderme da inércia, e essa tem sido a estratégia narrativa de von der Leyen et caterva.
Não se julga aqui o mérito da percepção, mas os resultados esperados da narrativa que se funda nela.
Se em 2014, na Cúpula da OTAN, chegou-se a um acordo não-vinculante de elevação do investimento em defesa a 2% do PIB, o início da Guerra Russo-Ucraniana fez transformar uma mera aspiração em uma questão urgente. A publicação de Strategic Compass for Security and Defence - plano de defesa da UE - e diversas resoluções no Parlamento Europeu enquadraram inequivocamente a Rússia como a principal ameaça à segurança continental e justificaram a necessidade de um salto na capacidade de defesa do bloco. Em 2024, já se esperava que 16 Estados-Membros da UE superassem a meta de 2%, e um número crescente de especialistas passou a defender 3% do PIB como um objetivo mais realista diante da “agressão russa”. Na cúpula da OTAN deste ano, assumiu-se o compromisso de investimento de 5% do produto interno bruto em defesa até 2035. Em suma, um crescendo.
E Washington tem ajudado decisivamente a transformar a Rússia em mais um desses espectros que de tempos em tempos rondam a Europa. Por mais de oito décadas, os Estados Unidos, com sua liderança inconteste sobre a aliança transatlântica, permitiram que muitas nações europeias mantivessem orçamentos de defesa relativamente modestos. Mas quando Trump passa a ameaçar de serem deixados à própria sorte os membros da OTAN que falham com seus compromissos de investimento em defesa, o prospecto de tal coisa entra, inevitavelmente, no horizonte do possível. Com o governo norte-americano eliminando qualquer ambiguidade em seu compromisso com a defesa de seus aliados, e declarando de forma explícita que “a Europa tem de pagar mais" por sua própria segurança, surgiu no horizonte um cavalo de batalha pronto a ser cavalgado pelas lideranças europeias, dispostas a convencer o contribuinte de que o esforço de ter mais armas não só vale à pena, como é inevitável.
Mas pode-se bradar aos quatro ventos tudo aquilo que as sensibilidades políticas admitem. Isso não muda fatos que são objetivos, e que estão muito além das palavras de ordem e declarações contundentes. A autonomia militar europeia esbarra em problemas de viabilidade tecnológica e industrial e, principalmente, em uma convergência política menos efetiva do que se poderia imaginar diante do “terror” provocado pelas “hordas do Leste”. Vejamos:
O mercado de defesa europeu é cronicamente fragmentado, diferentemente do norte-americano, bem orgânico e animado por economias de escala. Por conta de interesses soberanos e nacionais, na União Europeia operam múltiplos sistemas de armas dedicados a cumprir as mesmas funções, o que resulta em ineficiências, custos elevados e falta de interoperabilidade. 14 diferentes tanques, 15 tipos de obuseiros de 155mm, 16 diferentes aeronaves de caça e interceptação, 5 modelos de helicópteros de ataque e 29 classes de fragatas e destróieres fazem parte do portfólio das forças de defesa da UE, enquanto os Estados Unidos operam apenas um modelo de tanque, 3 sistemas de obuseiros, 6 modelos de interceptadores/caças, 2 modelos de helicópteros de ataque e 4 classes de fragatas/destróieres 1 Embora esses dados sejam do ano de 2012, a situação não se alterou significativamente desde então. Cada sistema de armas redundante representa um interesse industrial doméstico protegido em detrimento da interoperabilidade continental. Não há sinais, no médio prazo, de que esses sistemas de armas serão racionalizados em prol de ganhos de eficiência e escala.
1 McKinsey & Company. (2013). The future of European defence: Tackling the productivity challenge.
https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/industries/public%20and%20social%20sector/our%20insights/enlisting%20productivity%20to%20reinforce%20european%2 0defense/the%20future%20of%20european%20defence.pdf
A capacidade de produção europeia está muitos graus aquém do necessário para a sustentação de uma guerra de atrito. Por exemplo, apesar do compromisso da UE de fornecer um milhão de projéteis à Ucrânia até março de 2024, a meta foi atingida com nove meses de atraso, evidenciando os gargalos na cadeia produtiva e a lenta adaptação da indústria de um modelo de produção just-in-time para um de just-in-case. A indústria europeia enfrenta ainda dependência estratégica em tecnologias e matérias-primas críticas, como é o caso da nitrocelulose (componente importante para munições), cuja maior parte da oferta provém da China. No setor aeronáutico, a despeito da existência de modelos locais como o Dassault Rafale, o SAAB Gripen e o Eurofighter Typhoon, a Lockheed norte-americana foi escolhida para fornecer a espinha dorsal da força de interceptadores europeus (com seu F-35). Isso gera um paradoxo estratégico peculiar: ao buscar autonomia justamente por desconfiar da postura internacional dos Estados Unidos, a Europa acaba vendo no F-35 (um sistema testado, interoperável e prontamente disponível) a opção de menor risco no curto prazo. O resultado, assim, é o aprofundamento, e não a redução, da dependência tecnológica europeia em relação a Washington.
Mas talvez o ponto mais delicado esteja na viabilidade política e na coesão estratégica entre os membros da UE. Primeiramente, e ao contrário do que se poderia crer, a percepção da ameaça russa não é monolítica na Europa; existe uma dissonância marcante entre as nações do flanco leste da OTAN e os países da Europa Ocidental. Para os "frontline states" como Polônia, Finlândia e os países bálticos, a ameaça é entendida como existencial e imediata, informada pela geografia e por uma memória histórica de ocupação soviética. Em contraste, nações geograficamente mais distantes do “front”, como Espanha, Portugal ou mesmo a França, historicamente mantiveram uma postura mais distanciada, focada em ameaças provenientes do flanco sul, como terrorismo e instabilidade no Sahel. É claro que a Guerra Russo-Ucraniana gerou um grau de convergência sem precedentes e um reconhecimento generalizado de risco; mas disso não se pode intuir que esse risco seja sentido com a mesma intensidade. Essa diferença de percepção acaba se traduzindo em debates políticos internos variados sobre a alocação de recursos e o nível de prontidão militar necessário, que se por um lado não comprometem decisivamente a direção que segue o processo de rearmamento, por outro, vêm aumentando seus custos de transação, e reduzindo a velocidade da mudança.
E se não bastasse, no coração da UE rivalidades históricas são revividas em meio à tensão. A nova postura militar da Alemanha é ambiciosa; parece inequívoco que Berlim pretende assumir a liderança militar da Europa, e colocar em prática um abandono relativo de sua indústria manufatureira em benefício de concentrar esforços para a produção de armamento em larga escala. Em Paris, a postura “heróica” alemã diante do terror russo é vista como um desafio ao tradicional protagonismo francês na liderança da defesa europeia, oferecendo um substancial entrave à integração dos sistemas de armas em nível continental, à redução dos custos, à construção de uma política de aquisição comum, e aos ganhos em interoperabilidade e eficiência.
É correto afirmar que a convergência de uma ameaça externa existencial e a incerteza sobre a garantia de segurança americana criaram um impulso político sem precedentes. Mas tal fato não parece que tornará o rearmamento europeu um desdobramento inequivocamente bem-sucedido. Para além das questões tecnológicas e econômicas, que por são grandes por si mesmas, o obstáculo mais crítico permanece sendo o político: a defesa coletiva parece esbarrar em prioridades nacionais, diante das quais mesmo orçamentos vultosos e planos industriais ambiciosos resultarão em pouco mais do que uma coleção fragmentada de capacidades militares, incapaz de garantir a soberania estratégica do continente.
A DESIGUALDADE ENTRE OS EUROPEUS
Por Wagner Sousa
Reportagem da Rádio França Internacional (RFI) diz que, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas da França, Insee, o nível de pobreza em 2025 chegou a 15,4% da população, o nível mais alto desde 1996. Ainda segundo a matéria, a Pesquisa de Impostos e Seguridade Social Francesa (ERFS), releva que 9,8 milhões de franceses vivem abaixo do nível de pobreza, com 1288 euros mensais, abaixo de valor do salário mínimo. O site da rede pública germânica Deutsche Welle, a respeito da Alemanha, destaca o relatório do Conselho da Europa, de 2024, o qual afirma que o elevado nível de pobreza e desigualdade social é desproporcional à riqueza do país e que a pobreza é um problema grave alemão, sobretudo para crianças, idosos e pessoas com deficiência. Levantamento do Gabinete de Estatísticas da União Europeia mostra que um número em torno de 93,3 milhões de habitantes da União Europeia, ou algo como 21% da população, estavam, em 2024, em risco de pobreza ou exclusão: Bulgária (30,3%), Romênia (27,9%), Grécia (26,9%), Espanha e Lituânia (ambos com 25,8%) são os países com índices mais elevados; República Tcheca (11,3%), Eslovênia (14,4%), Holanda (15,4%), Polônia (16%) e Irlanda (16,7%) têm os percentuais mais baixos.
A propriedade imobiliária e os sistemas fiscais de cada país tem um peso determinante na desigualdade. Os 10% mais ricos na Europa detém 67% da riqueza enquanto os 50% mais pobres da população adulta têm 1,2% da mesma. A desigualdade na distribuição da riqueza varia bastante dependendo do país. O património líquido ou "riqueza" é definido como o valor dos ativos financeiros mais os ativos reais (principalmente habitação) que as famílias possuem, menos as suas dívidas.
A desigualdade de riqueza, contrariando o sendo comum, é bastante elevada nos países nórdicos. A Suécia é o país europeu com a maior desigualdade e Noruega, Dinamarca e Finlândia encontram-se na metade superior da lista de mais desiguais países europeus, de acordo com o Global Wealth Databook, de 2023. Das “quatro grandes” potências da União Europeia, a Alemanha é o país mais desigual, seguido de França, Espanha e Itália. No caso sueco, especificamente, a desigualdade, em um país com bons índices de bem-estar e rendimento, deu-se principalmente pelas mudanças no sistema fiscal. Segundo a cientista política Lisa Pelling, ao Euronews Business: "Nas últimas décadas, abolimos uma série de impostos sobre a riqueza (...) Na Suécia, atualmente, não existe imposto sobre o patrimônio. Também não há impostos sobre heranças, doações e propriedades (...) Também temos impostos muito baixos sobre as empresas. Isto significa que existem muitas possibilidades para as pessoas ricas enriquecerem ainda mais".
Os serviços públicos ou o chamado Estado de Bem-Estar Social foram criados originalmente na Europa no quadro de um conflito permanente que Charles Tilly identificou como “mecanismos sociais explicativos das desigualdades". Após a Segunda Guerra Mundial o continente viveu situação histórica e correlação de forças que propiciou o avanço da democracia política e do moderno Estados de Bem-Estar Social. Os avanços econômicos e sociais foram sem precedentes.
Mas a “correção dos excessos” das políticas econômicas e sociais que beneficiaram os trabalhadores veio a partir dos anos 1980, a “revolução conservadora” de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, que enfraqueceu os sindicatos, financeirizou a economia e aumentou a desigualdade. Do ponto de vista do interesse nacional norte-americano o dólar forte centralizou, após os tortuosos anos 1970, a economia mundial novamente nos Estados Unidos e a política monetária do mundo voltou a estar plenamente subordinada ao Federal Reserve. As economias europeias seguiram o novo consenso anglo-saxão da “economia da oferta” e aplicaram o mesmo receituário, que está na base do funcionamento da moeda comum, o euro, e das instituições econômicas da União Europeia. O aumento da polarização social com o consequente aumento do extremismo político foi a principal consequência para estas sociedades (nos EUA e na Europa) destas políticas.
O consenso político do pós-guerra na Europa Ocidental estava fundado na contenção da “ameaça vermelha”, de evitar a possibilidade de que estes países pudessem passar a orbitar em torno de União Soviética e adotassem seu modelo político, econômico e social. O colapso do bloco socialista, a partir da segunda metade dos anos 198,0 encerrou com esta possibilidade. O poder de barganha dos trabalhadores europeus se reduz sensivelmente com o “fim da história” e a nova ordem liberal que se anunciava nos anos 1990. O trabalho é “flexibilizado”, as fábricas “deslocalizadas” e os salários perdem participação na renda nacional de cada país. A fixação com o “equilíbrio orçamentário”, consagrado nas normas da União Europeia e de vários países, com destaque para o exemplo alemão, impuseram uma crescente incapacidade para os Estados lidarem com as carências sociais.
E têm-se um novo contexto nestes anos 2020. A pandemia de covid-19 explicitou as fragilidades dos Estados ao redor do mundo em suprir suas necessidades em suprimentos de saúde e a dependência neste setor em relação especialmente à China e à India. A guerra entre Rússia e Ucrânia e falta de um compromisso claro do atual governo dos EUA com a defesa do continente colocaram a Europa na obrigação de abandonar sua condição “confortável” de protetorado dos Estados Unidos com a OTAN para buscar maior autonomia estratégica (embora também as diferenças entre os próprios europeus compliquem para que esta coordenação regional efetivamente funcione). A Alemanha, já a partir do primeiro ano da invasão russa, 2022, e também como resultado dos efeitos muito negativos do “decoupling” com a economia russa e a perda do gás barato, passa a buscar sua recuperação econômica pela “economia de guerra” e o objetivo de constituir a mais poderosa força militar do continente. A Europa não tem boas memórias do período em que isto se concretizou.
Por fim, cabe ressaltar que a elite econômica e política da Europa, em especial dos maiores países, não parece capaz de repensar suas economias. No caso alemão, a principal economia e “motor” da UE, o orçamento foi “flexibilizado” para aumento de gastos com defesa e infraestrutura. Porém, o Chanceler Friedrich Merz está propondo também corte de gastos sociais. Na França, Itália e Espanha, para citar os maiores países da UE, depois da Alemanha, a “camisa de força” do euro (os países não tem política monetária autônoma) e de políticas fiscais restritivas, como colocado acima, vem debilitando as infraestruturas físicas desses Estados e também seus aparatos de auxílio social. Os britânicos, embora tenham moeda própria, não estão se saindo melhor. Num mundo de emergência de China, Índia, Indonésia e outros atores “emergentes” a Europa vai perdendo sua participação no PIB mundial, suas empresas vão sendo desbancadas por novos concorrentes destes países, que vem também surgindo como fortes concorrentes em inovação tecnológica. Um mundo mais “multipolar” e complexo, em que a Europa é cada vez menos poderosa e não consegue vislumbrar, até este momento, qualquer novo projeto conjunto que não passe pelo reforço à vassalagem aos Estados Unidos.
A POSIÇÃO RUSSA FACE AO BELICISMO EUROPEU
Por Andrés Ferrari
Com o provérbio "não há remédio contra uma alavanca senão outra alavanca", o presidente russo Vladimir Putin explicou a posição da Rússia contra o que ele considera tentativas de impor a hegemonia global pelo ocidente. Putin discursou na sessão plenária do 22º encontro anual do Clube de Debates Valdai, onde apresentou sua visão para o futuro da ordem mundial.
O espírito da hegemonia ocidental do século XX: militarização
Donald Trump declarou que a Rússia estava lutando sem rumo na Ucrânia, descrevendo-a como um "tigre de papel", ao que Putin respondeu: "Se estamos lutando contra todo o bloco da OTAN, avançando, progredindo e nos sentindo confiantes, e somos um 'tigre de papel', então o que é a própria OTAN?". No entanto, Putin afirmou que a Rússia está, na verdade, buscando restaurar as relações com os Estados Unidos em larga escala e que contradições surgem nesse processo, mas considera isso "normal".
Para o presidente russo, a gravidade da situação reside no comportamento dos europeus, que intensificam constantemente o conflito na Ucrânia sem outros objetivos. Em resposta, o Kremlin acompanha de perto a crescente militarização da Europa e sua reação a essa militarização será bastante convincente.
Putin rejeitou como "absurdos" os argumentos da UE que justificavam essa militarização com base na alegação de que a Rússia planejava um ataque contra ela ou contra a OTAN. Ele enfatizou que os políticos que promovem essa ideia são "extremamente incompetentes" ou "desonestos" e estão mentindo para seus cidadãos. Ele também lembrou que primeiro a URSS e depois a própria Rússia, por duas vezes, declararam sua disposição de aderir à OTAN, mas em ambas as ocasiões foram rejeitadas "categoricamente". Ele chegou a recordar que Clinton respondeu negativamente em 2000 e considerou a adesão da Rússia à OTAN irrealista.
Assim, o perigo de uma escalada grave da guerra, na visão russa, decorre das tentativas dos Estados ocidentais de controlar o
mundo ou ditar como os outros "devem respirar". Atualmente, Putin afirma que o Ocidente está usando os ucranianos como "bucha de canhão", sem se importar com o futuro da Ucrânia. Para esses países, a situação na Ucrânia é uma forma de expandir sua esfera de influência e obter lucros extras. Portanto, ele considera a Europa a principal responsável pelo derramamento de sangue na Ucrânia.
Segundo Larry Johnson, ex-agente da CIA consultado pela Sputnik, Putin mostrou ao mundo que “não está em pânico, que não demonstra qualquer tipo de medo e que continua a apresentar uma postura muito ponderada”, deixando também claro que a Rússia continua a buscar uma solução para o conflito na Ucrânia “por meio de negociações”. Nesse sentido, Johnson enfatiza que Putin “fez uma distinção entre os Estados Unidos e a Europa, observando que a Europa é muito mais beligerante e ameaçadora. Mas que a Rússia prefere, mais uma vez, dialogar em vez de lutar, embora lute se necessário”.
No entanto, Putin, assim como a Rússia em geral, enfatiza que o problema na Europa reside principalmente em suas elites, que estão traindo seu próprio povo. O presidente russo observou que as tentativas da elite europeia de "controlar tudo levam à sobrecarga e minam sua estabilidade interna", razão pela qual "algumas das principais sociedades europeias estão decepcionadas com suas elites políticas". A respeito dessas declarações, Dmitry Suslov, vice-diretor do Centro de Estudos Europeus e Internacionais da Escola Superior de Economia da Rússia e vice-diretor de pesquisa do Conselho Russo de Política Externa e de Defesa, disse à Sputnik que "a postura hostil da Europa se deve a fracassos políticos internos e à situação desesperadora na Ucrânia no campo de batalha", e que é por isso que "eles estão histéricos, trabalhando para alcançar uma escalada... usando a Rússia como imagem de inimigo para preservar o poder das atuais elites que se arruinaram".
Suslov enfatizou que esse desespero político se manifesta em provocações militares e híbridas imprudentes, incluindo operações coordenadas com drones e a apreensão ilegal de embarcações. Ele ressaltou que a detenção, pela França, de um petroleiro russo em águas neutras estabeleceu um precedente perigoso de pirataria patrocinada pelo Estado, como Putin a descreveu, "porque é exatamente isso que é do ponto de vista do direito internacional".
O espírito da diplomacia do século XXI: multipolaridade
Suslov enfatizou que essas pressões ocidentais não afetam a Rússia porque o país mantém fortes parcerias estratégicas com o
resto do mundo, o que lhe permite resistir às sanções ocidentais sem prejudicar sua economia. Nesse sentido, Suslov observou que parceiros-chave no Sul Global continuam a aprofundar a cooperação com Moscou, particularmente nas áreas de energia e segurança.
De fato, o ex-agente da CIA Larry Johnson considerou o discurso uma mensagem de Putin para o Sul Global e os parceiros da Rússia. Da mesma forma, para Anuradha Chenoy, professora aposentada da Universidade Jawaharlal Nehru, reflete " a mudança do sistema internacional para um modelo policêntrico/multipolar, onde os interesses de todos os países devem ser considerados, e que isso é possível se a segurança dos países for levada em conta". Isso fica evidente, aponta Chenoy, no fato de o discurso "ter se concentrado na necessidade de paz, pluralismo e coexistência de todas as culturas e raças. Ele expressou a esperança de que a paz chegasse a este mundo multipolar. Ele também disse que a hegemonia e a política de blocos não são possíveis na estrutura atual do mundo policêntrico".
A multipolaridade que Putin destaca como sendo “uma consequência direta das tentativas de estabelecer e preservar a hegemonia global” se expressa, em sua visão, no surgimento de novas instituições e diferentes organizações regionais que surgiram para substituir as instituições da ordem internacional do pós-guerra, as quais fracassaram devido à tentativa de impor uma ordem mundial unipolar após o colapso da União Soviética. Putin afirma que a Rússia compreendeu que no mundo atual “não há, nem nunca houve, uma alternativa à busca de soluções baseadas no consenso” e que “gradualmente percebemos que precisávamos criar instituições onde os problemas fossem resolvidos não da maneira como nossos colegas ocidentais tentavam resolvê-los, mas genuinamente com base no consenso, genuinamente com base em posições alinhadas”.
Em particular, Putin enfatizou a importância da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e do BRICS, nos quais a Rússia é muito ativa. Sobre a OCX, ele observou que ela surgiu em 2001 em resposta à “necessidade de regular as relações fronteiriças entre os países: as ex-repúblicas soviéticas e a República Popular da China. De fato, funcionou muito bem. Começamos a expandir seu escopo de atividade. E decolou!”
Em relação aos BRICS, ele enfatizou que “todos os participantes perceberam imediatamente, apesar de alguns atritos entre eles, que se tratava de uma boa plataforma no geral; não havia desejo de impor limites, de promover interesses próprios a qualquer custo. Em vez disso, todos entenderam que era preciso buscar o equilíbrio”. Assim, os BRICS emergiram como “parceiros, unidos por uma ideia comum de como construir relacionamentos para encontrar soluções mutuamente aceitáveis… O mesmo começou a acontecer em todo o mundo”.
Segundo Putin, a multipolaridade global já se tornou uma realidade, e isso se manifesta na crescente autoridade dessas organizações, inclusive as regionais, que são “fundamentais para garantir que o novo e complexo mundo multipolar tenha, ainda assim, uma chance de ser estável”. Todas essas organizações regionais cresceram no espírito da diplomacia do século XXI.
O PONTO DE "NÃO RETORNO" DA DESDOLARIZAÇÃO
Por Maurício Metri
O documento FEDS Notes de julho de 2025, intitulado "O Papel Internacional do Dólar – Edição de 2025", elaborado pelo Federal Reserve, divulgou dados atualizados sobre o índice de utilização das principais moedas nacionais conversíveis. O dólar permaneceu estável ao longo do período de 2000 a 2024, variando entre 60 e 70. O euro também flutuou pouco, de 20 a 30, assim como o iene japonês e a libra esterlina, de 5 a 10. O renminbi chinês (RMB), por outro lado, ocupa apenas o quinto lugar nessa hierarquia, com crescimento de 0 para 3 nos últimos 15 anos.
A posição e a estabilidade do dólar impressionam porque, ao longo desse período, os EUA incorreram em déficits estruturais em sua conta corrente, apresentaram um crescimento constante de sua dívida pública como percentual do PIB e submeteram o mundo a graves crises financeiras, como a crise da internet em 2001 e a Grande Recessão de 2008. Apesar disso, não houve fuga das posições em dólar. Ao contrário, os títulos da dívida pública dos EUA permaneceram sendo o ativo porto seguro do sistema, especialmente em tempos de significativa incerteza e crise.
Com base nisso, o documento concluiu que não há ameaças significativas ao dólar como moeda de referência internacional. Nem mesmo o uso generalizado do dólar como arma de guerra por meio de sanções econômicas e financeiras contra diferentes países, empresas e indivíduos, visados por sua política externa, comprometeu a posição do dólar, de acordo com o documento.
Em julho de 2025, o Banco Popular da China também publicou documento técnico sobre a hierarquia monetária internacional, intitulado Livro Branco sobre a Internacionalização do RMB. Segundo o documento, o uso global do RMB em 2024 atingiu 4,2% dos pagamentos internacionais, 5,5% do financiamento do comércio exterior, 5% das negociações cambiais e 2,2% das reservas cambiais. Em termos comparativos, o RMB foi a terceira moeda mais utilizada no financiamento do comércio, a quarta mais utilizada para pagamentos, a quinta mais utilizada em negociações cambiais e apenas a sétima mais utilizada como moeda de reserva. Portanto, de
forma semelhante às Notas do FEDS de Washington, o Livro Branco de Pequim demonstra, em última análise, que a moeda chinesa ainda não alcançou uma posição significativa na atual hierarquia internacional.
Portanto, enquanto o relatório do Federal Reserve reforça a centralidade do dólar na economia global e aponta para a ausência de ameaças concretas e potenciais, o relatório do Banco Popular da China, embora não contradiga essas conclusões, prefere destacar o recente crescimento da internacionalização do renminbi, sem, contudo, mostrar uma mudança mais significativa na posição de sua moeda nacional na hierarquia monetária internacional.
Diante desses dados e análises, não é fácil chegar a uma conclusão diferente. No entanto, há razões para acreditar que nenhum dos relatórios deu a devida atenção aos pilares mais importantes para a determinação da hierarquia monetária internacional. As reconfigurações da hierarquia monetária internacional não são, e nunca foram, processos de mercado, como geralmente se presume. Os agentes econômicos e a maioria dos Estados-nação têm pouca capacidade de iniciativa estratégica nesse campo. Trata-se de uma disputa entre grandes potências.
Os relatórios de Washington e Pequim não observaram que diversas iniciativas, para contornar o sistema do dólar, por meio da construção de uma infraestrutura monetária e financeira em pontos sensíveis à hierarquia do sistema, estão em pleno andamento, tais como: a criação de espaços para a precificação de commodities estratégicas fora do dólar; o estabelecimento de organizações multilaterais de financiamento fora do poder de veto de Washington; e a construção de sistemas internacionais de pagamento e comunicação interbancária que contornam o sistema SWIFT. Estes são processos cujas dinâmicas as forças de mercado não capturam imediatamente, mas são fortes o suficiente para exercer pressão estrutural sobre os pilares do dólar no sistema internacional contemporâneo.
Em relação à precificação de bens estratégicos, desde 2018, a Bolsa de Futuros de Xangai negocia contratos futuros de petróleo e outras commodities em yuan, criando assim um espaço fora do território do dólar americano. Por exemplo, como a China é a maior consumidora mundial de metais industriais, mas grande parte desse comércio ocorre em dólares, a Bolsa de Futuros de Xangai, em maio deste ano, promoveu uma maior abertura para favorecer a colocação do renminbi no centro desses contratos em detrimento do dólar.1
1 https://www.reuters.com/markets/commodities/shanghai-futures-exchange-open-wider-foreigners-bid-internationalise-renminbi-2025-05-27/
Quanto aos sistemas de comunicação interbancária fora do território do dólar, existem pelo menos três em operação, em diferentes estágios de desenvolvimento. Há o sistema de mensagens financeiras da Rússia (SPFS), que consegue contornar o sistema SWIFT. Seu sucesso recente levou a França e a Alemanha a pressionarem por novas sanções ainda mais rigorosas contra bancos estrangeiros que mantêm relações comerciais com Moscou por meio do sistema russo.1
Da mesma forma, a Índia já desenvolveu seu sistema estruturado de mensagens financeiras (SFMS), assim como os chineses, que criaram sua própria rede internacional de pagamentos, o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (CIPS). Para se ter uma ideia, “Os volumes anuais por meio do Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (CIPS) atingiram cerca de 175 trilhões de yuans (US$ 24 bilhões) em 2024, uma taxa de crescimento anual de mais de 40%, de acordo com seus próprios dados.”2
Em um artigo recente, a CNBC analisou a interface entre o petróleo e os sistemas de pagamento não dolarizados. “Durante anos, a China comprou petróleo iraniano a granel com desconto, e as sanções dos EUA contra Teerã tiveram pouco efeito nesse comércio, segundo analistas, graças a uma cadeia de suprimentos paralela de transbordo e a um sistema de pagamento denominado em yuan que ignora o dólar americano.”3
No âmbito das instituições financeiras internacionais, a novidade foi a decisão da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), em sua cúpula em Tianjin, na China, de conceber seu próprio banco de desenvolvimento. Além de criar uma nova fonte de financiamento internacional, o objetivo do novo banco será contornar a Euroclear e a Clearstream, por meio de uma infraestrutura financeira para liquidação, custódia e gestão de ativos em casos de transações transfronteiriças e domésticas envolvendo títulos, ações, derivativos e fundos fora do território do dólar.4
Portanto, não é difícil perceber que já existem iniciativas em andamento e em vários estágios de consolidação para reconfigurar a geografia monetária internacional. Elas se concentram em pontos sensíveis dentro da hierarquia do sistema, com o objetivo principal de contornar o território do dólar, implementada por estados com capacidade de se defender contra vetos e retaliações.
1 https://www.rt.com/business/624578-eu-targets-russian-swift/
2 https://www.bloomberg.com/news/articles/2025-05-09/global-shift-to-bypass-the-dollar-is-gaining-momentum-in-asia
3 https://www.cnbc.com/2025/06/27/china-us-sanctions-shadow-fleet-top-iranian-oil-buyer-trade.html
4 https://iz.ru/en/node/1952520
Como não há nada que indique uma desaceleração das rivalidades geopolíticas entre as principais potências no sistema internacional, nem há qualquer indicação de que um dos lados dessa disputa será capaz de se impor unilateralmente num futuro próximo, continuará havendo uma disposição para confrontar a violência do dólar. Nesse sentido, pode-se afirmar que o mundo já ultrapassou o ponto de não retorno para outras configurações monetárias internacionais, muito provavelmente na direção da formação de blocos monetários, como prevaleceu em diferentes outros momentos da história. Ademais, o processo para uma nova reformulação da geografia monetária não será necessariamente tão lento quanto os analistas econômicos geralmente supõem e os dados de mercado sugerem.
A disputa entre as grandes potências determinará tanto a direção quanto a velocidade dos eventos no campo monetário. Como disse certa vez a ex-presidente da Argentina, Cristina Kirchner (2007-2015), com precisão, concisão e franqueza: “É geopolítica, estúpido.”1
1 https://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-281194-2015-09-08.html
O MOMENTO EM QUE A CHINA "VIROU O JOGO"
Por Elias Jabour
Na política os gestos, mesmo os pequenos contam muito. Enquanto Donald Trump foi recebido no Japão como um chefe colonial, com direito às suas performances retóricas e corporais e gestos de vassalagem da nova primeira-ministra do país, Sanae Takaichi, que por sua vez prometeu investimentos produtivos nos Estados Unidos, mesmo mantendo as tarifas de 15% sobre seus próprios produtos. Seria o Japão uma Alemanha da Ásia? A resposta a esta questão pode estar ligada a como a China tem respondido às investidas dos EUA à sua economia e soberania.
Uma volta ao tempo é necessária. É consenso que os chineses não estavam preparados para o que estava por vir em 2017. Ou seja, um bullying tecnológico sem precedentes na história. Ou pelo menos sem precedentes na era do sistema interestatal capitalista. A governança chinesa exitou em perceber que as coisas tinham mais profundidade quando viu a filha do acionista majoritário da Huawei presa no Canadá. Havia uma guerra declarada para o qual os chineses só estavam imaginando ocorrer nas próximas décadas, mas a própria financeirização e sua lei de tendência de reduzir a pó a capacidade de um país em ter saltos de qualidade em matéria de inovação tecnológica. Os EUA, a economia mais financeirizada do mundo, estava sob ampla ameaça econômica e tecnológica dos chineses. Algo deveria ser feito. E foi. E o resultado foi pior que a encomenda.
O que veio depois foi uma intensa campanha baseada em um famoso texto de Mao Zedong (“Sobre a Guerra Popular Prolongada”) em que a China reorganizou completamente seu ecossistema de inovação tecnológica, incorporando a ela milhares de startups operando com aportes de bilhões de dólares. Estavam sendo criadas as condições para um novo Momento Sputnik onde uma empresa de fundo de quintal (DeepSeek) conseguiu derrubar as ações da gigante Nvidia em um processo histórico claro de tomada de dianteira da China em relação aos EUA em setores sensíveis de alta tecnologia. A Huawei que se viu em situação de pré-falência não somente recuperou-se como domina amplamente o mercado chinês. E o país lidera a atual revolução técnico-científica nos setores relacionados às cadeias produtivas relacionadas à transição energética.
Donald Trump volta ao governo dos EUA disposto a colocar o mundo, incluindo a China, de joelhos. Com tarifas em escala cada vez maior contra os chineses que por sua vez demoravam a responder. Respondiam de forma tática, atacando bases eleitorais do trumpismo como os plantadores de soja. Não contente com a reação chinesa, o “bloqueio comercial total” estava se aproximando diante da negativa de negociar fora de seus termos.
E quais são os termos dos chineses? São dois. O tático: base eleitoral do trumpismo. O estratégico: a cartada das terras raras. Ora, o recado final da China foi claro. Estava pronta para qualquer guerra contra os EUA. Sua aposta final foi a imposição de 125% de tarifas sobre todos os produtos estadunidenses e controle total sobre as exportações de minerais críticos processados. A China não era o mesmo país de 2017. Muito menos a URSS sob Gorbachev. Sabe-se que o gigante asiático dispõe de 70% das terras raras do mundo e, o mais impressionante, 90% dos minerais críticos processados. Ou seja, somente a China detém as tecnologias de processamento destes minerais. Por outro lado, os Estados Unidos necessitariam de uma outra revolução industrial para obter independência tecnológica em matéria de agregar valor às terras raras.
O presidente dos EUA que encontrou Xi Jinping em Busan (Coreia do Sul) não foi o mesmo que encontrou a primeira-ministra japonesa. Manteve seus gestos histriônicos, mas teve de esperar por cerca de 30 segundos a entrada do homólogo chinês no palco. Caminhando lentamente, de cabeça erguida o herdeiro de Mao Zedong cumprimentou friamente o mandatário. Por sua vez, Trump lançava suas frases de efeito diante de um Xi Jinping frio. Longe de ser um Nixon ou um Reagan Trump revelou-se a cara de um líder ocidental na atualidade diante de uma autoridade real.
No final das contas, as concessões chinesas mostram que, de forma interessante, a grande dependência dos Estados Unidos do mercado chinês para seus produtores de soja. Era como se o Brasil estivesse pedindo aos chineses acesso ao mercado deles. A China comprometeu-se a comprar cotas crescentes de soja dos EUA e voltar a permitir o fluxo de minerais críticos. A questão que fica aos analistas minimamente sérios reside numa pergunta simples, sem ser simplista: o jogo virou nesta história de bullying tecnológico?
Eu não tenho dúvidas que hoje a China não somente está preparada a um enfrentamento em qualquer nível com os Estados Unidos quanto deverá apostar, sempre que possível, em medidas táticas e estratégicas. O fato é que os chineses podem parar a máquina de guerra estadunidense caso decida unilateralmente deixar de fornecer minerais críticos processados. Por outro lado, dificilmente os EUA tem força para seguir o caminho de desfinanceirização de sua economia e promoção de uma revolução industrial envolvendo as cadeias produtivas de processamento das terras raras.
O mundo não é mais o mesmo.
O ACORDO DE PAZ EM GAZA
Por Wagner Sousa
Segundo matéria da Agência Brasil de 10.11.2025: “O acordo de cessar-fogo na Faixa de Gaza completou um mês nesta segunda-feira (10) com 271 palestinos assassinados no período, informou o Hamas. Outras 622 pessoas ficaram feridas devido aos bombardeios e disparos, incluindo 221 crianças. O grupo islâmico anunciou que apenas 40% da ajuda humanitária prevista no acordo entrou em Gaza no período. O documento previa a entrada de 600 caminhões por dia, sendo 50 caminhões-tanque de combustíveis. (...) A ajuda humanitária fornecida pela Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA) continuaria a enfrentar bloqueios por Israel. Isso apesar do parecer da Corte Internacional de Justiça (CIJ) afirmando que Israel tem a obrigação de permitir que os suprimentos fornecidos pela UNRWA entre em Gaza.”
Conforme amplamente divulgado, o governo norte-americano propôs um governo internacional temporário, tendo no topo de sua hierarquia um chamado “Conselho da Paz”, chefiado e presidido pelo presidente norte-americano Donald Trump, e um “interventor” para este “consórcio anglo-saxão”, o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair. O controle de Gaza seria posteriormente cedido à Autoridade Palestina. Gaza, por esta proposta, não será anexada por Israel e o Hamas não poderá ter participação no governo do território. Integrantes do grupo palestino que se renderem seriam anistiados. A proposta também inclui a retirada gradual das forças israelenses de Gaza e a desmilitarização do território.
O “plano de paz” conforme informações trazidas pelo portal da tv estadunidense CNN, diz que Gaza terá um governo transitório temporário, formado por um comitê palestino tecnocrata e “apolítico”, responsável pela gestão cotidiana dos serviços públicos e dos municípios para a população de Gaza. Este comitê seria composto por palestinos qualificados e peritos internacionais, com supervisão por parte de um novo órgão internacional de transição, descrito no parágrafo acima, o “Conselho da Paz”. Este órgão administrará o financiamento para a reconstrução de Gaza até que a Autoridade Palestina conclua o seu programa de reformas, conforme descrito em várias propostas, incluindo o plano de paz do presidente Trump, de 2020, e uma proposta franco-saudita.
Devolução de reféns vivos e mortos, soltura de presos palestinos, desarmamento do Hamas, retirada gradual das tropas de Israel, criação de uma força internacional composta principalmente por países árabes e um plano de reconstrução e desenvolvimento da região estão entre os pontos previstos. Apenas parte se concretizou, como a devolução dos reféns e soltura de presos. Israel se retirou de parte do território, aproximadamente a metade, e não há previsão de seguimento neste retirada. O Hamas nunca concordou expressamente com o seu desarmamento e é quase certo que não concordará. A desconfiança impera num ambiente onde os suprimentos e a ajuda humanitária seguem escassos e Israel, como apontado acima, voltou a atacar Gaza e causar muitos mortos e feridos.
O processo está paralisado. Há o claro risco de uma divisão do território de Gaza em duas partes, com os investimentos em reconstrução (calculada no total em torno de 70 bilhões de dólares) se concentrando na metade controlada por Israel, da qual faz parte a maior parte das terras agrícolas na porção sul do território. Israel também tem rejeitado qualquer envolvimento da Autoridade Palestina com apoio ocidental. Os governos árabes e europeus não devem participar, no caso do processo ter continuidade, se suas forças não forem tão somente para a manutenção da paz. O vice-presidente J.D Vance e o influente genro de Trump, Jared Kushner, sugeriram que os recursos para a reconstrução poderiam começar a ser direcionados para a parte controlada por Israel.
Esta última frase é bastante reveladora e indica que as esperanças em um processo de paz que levasse futuramente a um Estado Palestino parecem estar em desacordo com a realidade. A proposta de Trump, de tutelar os palestinos, mesmo que evolua (o que não parece o mais provável neste momento) já é bastante problemática, pois um governo palestino que não seja administrado pelos próprios, carece evidentemente de legitimidade. O caráter tecnocrático desta ideia não enfrenta problemas políticos que só os próprios palestinos poderiam resolver. Esta solução difícil, todavia, parece que está sendo substituída por outra, pior, que mantém o expansionismo de Israel e a vida dos palestinos em condições dramáticas, nas regiões em que se mantém. ´Como sinal dos tempos (e das perspectivas, ou falta delas) o Parlamento de Israel (Knesset) aprovou um projeto de lei que prevê pena de morte obrigatória para palestinos que matem israelenses por motivos nacionalistas, mas não israelenses que matem palestinos pelos mesmos motivos.
A GEOPOLÍTICA DAS TERRAS-RARAS
Por Leonardo Castro
Em 16 de setembro de 2023, um sinal sísmico de período longo foi detectado em diversas localidades do globo. Ao mesmo tempo, autoridades dinamarquesas receberam relatos sobre um grande tsunami ocorrido na costa leste da Groenlândia. Pesquisadores de diversos países trabalharam em uma reconstrução detalhada do evento e a conclusão, publicada um ano depois na Science, foi que uma gigantesca massa rochosa de 25 milhões de metros cúbicos atingiu a água, causando um "megatsunami" de 200 metros de altura, que se debateu entre os paredões rochosos do fiorde Dickson por nove dias. O deslizamento foi causado pelo aumento das temperaturas na ilha, que derreteu parcialmente o glaciar na base da montanha.
Meses depois, o presidente eleito dos EUA Donald Trump declarou que o controle da Groenlândia era “uma necessidade absoluta” para seu país. Atualmente, a Groenlândia é um território autônomo ligado à Dinamarca, mas os EUA têm interesses no controle de seu território, considerado estratégico para a defesa nacional. Recentemente, outro atrativo se impõe: os recursos naturais da ilha, que incluem petróleo e gás, mas também metais de “terras-raras”. Esses metais, um grupo de 17 elementos químicos relativamente abundantes, mas de difícil extração, são essenciais para a produção de ímãs superpotentes, catalisadores e telas de alta definição, cruciais para a fabricação de carros elétricos, turbinas eólicas, eletrônicos e, não menos importante, equipamentos militares de ponta.
A corrida às “terras-raras” tem frequentado com alguma assiduidade o noticiário desde então, com a tentativa levada a cabo por Trump de impor acordos lesivos à Ucrânia para apropriação das reservas de minérios do país, em troca de apoio diplomático e militar e, pouco depois, com o acordo entre EUA e Austrália para a exploração das reservas de terras-raras australianas, que inclui uma carteira de projetos “ready-to-use” no valor de US$ 8,5 bilhões e investimentos de pelo menos US$ 1 bilhão em projetos.
No Brasil, o tema emerge mais discretamente após o discurso de Trump na Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro, devido ao relato que fez de um encontro supostamente casual com o
presidente Lula. Segundo Trump, os dois se abraçaram e concordaram em agendar uma reunião: “tivemos, pelo menos por uns 39 segundos, uma química excelente.” Foi surpreendente porque ocorreu em meio a uma grave crise diplomática entre os dois países, agravada em julho com o anúncio de tarifas de 50 por cento sobre exportações e sanções individuais contra autoridades brasileiras, justificadas por supostas práticas que ameaçariam a segurança nacional e a economia dos EUA, além de "perseguição política” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, condenado por tentativa de golpe de Estado entre outros crimes.
A “química excelente” talvez seja mais do que figura de linguagem. Segundo o U.S. Geological Survey – significativamente a fonte mais citada para esses dados – o Brasil detém a segunda maior reserva mundial de terras-raras, cerca de 21 milhões de toneladas métricas, atrás somente da China, com depósitos estimados de 44 milhões de toneladas. Segundo o Serviço Geológico do Brasil, 12 estados têm potencial para explorar as terras-raras, sendo as maiores reservas em Minas Gerais, Goiás e Amazonas. Pode-se supor que a distensão entre EUA e Brasil, além da “química” entre os presidentes, esteja relacionada aos (elementos) “químicos”.
O tarifaço contra o Brasil fracassou. As exportações cresceram e novos mercados se abriram aos produtos do país – a China passou a comprar mais soja brasileira, causando enormes prejuízos aos exportadores norte-americanos. Contrariando as previsões, a aprovação do governo aumentou. Não obstante, amplia-se a participação norte-americana na exploração de terras-raras no país: recentemente a Corporação Financeira Internacional para o Desenvolvimento do governo dos EUA anunciou um aporte de US$ 465 milhões para a empresa brasileira Serra Verde, em um projeto de expansão da produção em Goiás.
O pano de fundo desses projetos e acordos é a competição geopolítica e tecnológica entre EUA e China. No último decênio, os EUA vêm adotando medidas severas para deter o avanço chinês. O CHIPS Act, promulgado em 2022 no governo Biden, impôs barreiras à transferência de tecnologia avançada para a China por dez anos, além de incentivos à relocalização da produção de semicondutores em território americano. O segundo governo Trump radicalizou essas medidas com iniciativas que incluem investimentos massivos, aquisição de participação acionária e ameaças tarifárias para constranger empresas do setor a redirecionarem investimentos para os EUA (ver, a propósito, artigo deste autor no Boletim do Observatório do Século XXI nº 13, de setembro de 2025, pp. 19-22).
Para além dos avanços e recuos da guerra tarifária, o governo chinês tem usado consistentemente sua posição quase monopolista me mercado de terras-raras no contencioso com os EUA. A China extrai cerca de 60% das terras-raras do mundo e produz 90% dos ímãs fabricados a partir delas. O que explica esse domínio? Uma das etapas de processamento mais difíceis é o refino, a extração dos elementos químicos individuais. A China expandiu a produção a partir da década de 1980 e vem aprimorando as técnicas de extração. O menor custo da mão de obra e padrões ambientais mais flexíveis ajudaram a impulsionar o desenvolvimento do setor.
Pouco depois do tarifaço de Trump, em abril deste ano, a China incluiu sete metais de terras raras em uma lista de controles de exportação. Semanas depois, concordou em retirar essas medidas como parte de um acordo temporário, mas o governo americano acusou os chineses de retardar a remoção dos controles anunciando, em retaliação, tarifas exorbitantes. Porém, em 30 de outubro, às vésperas da entrada em vigor das novas tarifas, Trump e Xi Jinping se reuniram na Coreia do Sul, durante a Conferência de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, e anunciaram uma trégua de um ano. Em
9 de novembro, a China suspendeu controles de exportação de algumas terras raras para os EUA – o que pode ser visto como gesto de boa vontade, mas assinala, de fato, um recuo e uma derrota para os americanos.
Pouco depois de sua posse Trump, propôs a compra da Groenlândia à Dinamarca e chegou a cogitar sua tomada manu militari. A aposta é que o degelo abrirá novas rotas de navegação e facilitará a exploração de minerais na região. Aparentemente, o deslizamento da enorme massa de rocha e gelo e uma “onda” do tamanho de um prédio de 50 andares não causaram grande impressão, já que ocorreram no interior de um fiorde e não em mar aberto, onde seus efeitos teriam sido dissipados. Por acaso não havia navios por perto e, assim, não houve perdas humanas. Mas é significativo que um fenômeno com enorme potencial catastrófico como o degelo no Ártico seja visto como oportunidade de negócios e vantagem geopolítica.
Na estratégia chinesa de longo prazo, o controle sobre as terras-raras não importa tanto. É muito mais importante reduzir a dependência externa no fornecimento de semicondutores de alta performance e, mais do que isso, alcançar brevemente a liderança no setor. Detratores atribuem seu domínio técnico sobre o refino dos metais ao laxismo ambiental e descaso pela saúde dos trabalhadores. Possivelmente, mas o histórico do Ocidente “civilizado” não é abonador quando se trata de passivos ambientais e exploração do trabalho, notadamente no chamado Sul Global.
Terras-raras “na natureza” têm valor se houver condições de explorá-las; dificilmente o Brasil entrará no jogo sem tecnologia e capital externos. Resta ver em que condições, com respeito a dois fatores principais: internalização de processos complexos de produção e impacto ambiental. Dependerá, em parte, de poder de pressão e capacidade de negociação, mas também de elites políticas e empresariais menos descompromissadas com o destino nacional.
TRUMP E OS GENERAIS
Por Reinaldo Guimarães
“From the Halls of Montezuma/ To the shores of Tripoli; We fight our country's battles/In the air, on land, and sea;
First to fight for right and freedom/And to keep our honor clean; We are proud to claim the title/Of United States Marine”.
.............................................................................................
“We have fought in every clime and place/ Where we could take a gun;”
Do Hino dos Fuzileiros Navais dos EUA
Fica cada vez mais claro que Donald Trump tenta implantar um novo regime político nos EUA. É da tradição política norte americana um combate feroz aos adversários políticos quando o outro partido ganha a eleição presidencial. Presidentes democratas também o fizeram e isto é o “varejo” dos governos em seus inícios. O republicano Richard Nixon (1969-1974) chegou a preparar uma lista de inimigos políticos que deveriam ser objeto de perseguição e que virou peça importante na investigação do Senado que o levou à renúncia.1 Trump está fazendo o mesmo, mas seu projeto vai bem além disso. Os atos de perseguição mais importantes de Trump são outros, são um projeto de poder e atingem, mais que pessoas, instituições, algumas centenárias. Ele trabalha para destruir ou reformar radicalmente órgãos com vínculos ao governo federal. Seu novo governo pretende instituir um novo regime político. São cerca de 4,2 milhões de servidores públicos federais, metade dos quais militares.2
A extrema direita norte americana vem atacando a ideologia liberal desde o primeiro mandato de Trump e mesmo antes. Para denuncia-la, importou da Turquia um termo da direita turca (Derin Devlet em turco) cuja tradução para o inglês é Deep State. Na voz do trumpismo, esse ‘Estado Profundo’, liberal-democrático seria o responsável pela decadência dos Estados Unidos. Em 2014, um ex-funcionário da CIA, Mike Lofgren, publicou um ensaio intitulado Anatomy of the Deep State1 que é considerado o responsável pela popularização do termo. No ensaio, Lofgren adota um ponto de vista conspiratório, acusando o establishment liberal, em especial o executivo em associação com o judiciário e as agências de segurança interna, como as ferramentas desse Deep State. Eleito Trump em 2016, não houve condições políticas de enfrenta-lo, condições essas 100% disponíveis em Trump 2, com o domínio do Congresso e da Suprema Corte.
1 Richard Nixon's enemies list. https://en.wikipedia.org/wiki/Richard_Nixon%27s_enemies_list
2 Esses números são uma resposta do ChatGPT 4.0 com dados de 2023 à pergunta: ‘Quantos são os servidores públicos civis e militares nos Estados Unidos da América?’
Com o Partido Democrata de joelhos, Trump começou com uma brutal repressão aos imigrantes, com um ataque ao pensamento liberal nas universidades na Nova Inglaterra e na Califórnia e nas agências federais que as financiam em boa parte. Começou por aí porque é nelas que está a maior parte da intelectualidade que é, em parte, autora intelectual dos mecanismos políticos que governam a relação entre poderes e instituições nos EUA: os ‘Freios e Contrapesos’ de que tanto se orgulham os liberais. Além disso, as universidades vêm sendo o berço do pensamento Woke (ambiente, inclusão e diversidade), radicalmente rejeitado pela extrema direita global. Mas, penso que ainda está faltando para completar a obra o ataque a duas instituições centrais do Deep State: a diplomacia e as forças armadas.
A diplomacia talvez seja mais fácil de ser ajustada, pois os diplomatas, de maneira geral, são educados para a flexibilidade e tenham uma aguçada inclinação ao pensamento que vem de cima (há exceções, é claro). Já as forças armadas que, muito embora tenham como princípios a disciplina e a hierarquia, detêm o poder das armas. E Trump precisa dobra-las no sentido de quebrar o seu profissionalismo. No século XIX, foram utilizadas para quase dizimar os povos originários dos EUA e expandir seu território na vizinhança, mas durante todo o século XX foram treinadas para defender os EUA dos inimigos externos pelo mundo afora, em particular do comunismo e, mais recentemente do "terrorismo". From the halls of Montezuma to the shores of Tripoli, como reza o hino dos marines. Pois eu penso que Trump quer agregar a elas a missão de polícia, à feição das correspondentes brasileiras e outras do Sul Global, em sua busca frenética e histórica pela garantia da lei e da ordem internas. Ressalto que é uma expansão e não uma substituição de papeis. Continuarão a ser a polícia do mundo, mas agora também a polícia doméstica.
Trump tomou posse em janeiro e o envio de tropas militares para cidades nos EUA começou em Los Angeles em junho de 2025. Expandiu-se para Washington, D.C., em agosto. Foram enviadas tropas para Memphis, Tennessee, e Portland, Oregon, em setembro de 2025; planos estão em andamento para Chicago e potencialmente outras cidades como Nova York, Baltimore, São Francisco e Oakland, Califórnia. Pelo menos nessa escala é uma novidade nos EUA em tempo de paz. Principalmente porque as motivações são bastante variadas e incluem a repressão a manifestações contra o governo, o combate à criminalidade, a caça aos imigrantes, a repressão aos moradores sem teto, entre outras. Já em junho passado o jornal britânico The Guardian reproduziu uma declaração do Major General Paul Eaton que, em tradução livre disse: “Isso é a politização das Forças Armadas. Isso coloca os militares sob uma luz terrível – é como colocar um homem em cima de um cavalo quando realmente ele não quer estar ali, na frente dos cidadãos americanos.” 1 Esse militar é um oficial aposentado do Exército dos Estados Unidos que comandou as operações de treinamento de tropas iraquianas durante a operação “Liberdade do Iraque”. Eaton está enganado quando denuncia a originalidade da politização, pois a expansão do império norte americano em todo o século XX teve as forças armadas como instrumento central. Mas acerta ao apontar a tentativa de utiliza-las como instrumento de dominação política dentro do território.
1 Lofgren, M.Essay:Anatomy of the Deep State. In https://billmoyers.com/2014/02/21/anatomy-of-the-deep-state/
Um passo à frente no sentido de ajustar as forças armadas ao novo regime político foi dado por Trump ao convocar para uma reunião todos os oficiais generais e almirantes da ativa, dentro e fora dos EUA (cerca de 800 bases militares!) para um alinhamento em 30 de setembro. A maior parte da imprensa nacional e internacional, em momento de inimaginável miopia política, ressaltou dessa reunião o papel de um palhaço atlético que ocupa o posto de Secretário da Guerra que tratou da forma física dos militares que estariam excessivamente gordos e descuidados. Mas está evidente que não foi para isso que o evento foi convocado. Trump também fez um discurso em muitos aspectos diversionista como de hábito, mas em essência ressaltou a existência de uma guerra interna e convocou as forças armadas para travá-la. “Disse com clareza que o Pentágono usasse cidades americanas como ‘campos de treinamento’ para suas tropas, em uma ruptura notável com décadas de precedentes que buscavam manter a política e os militares separados"2.
1 “It casts the military in a terrible light – it’s that man on horseback, who really doesn’t want to be there, out in front of American citizens.” https://www.theguardian.com/us-news/2025/jun/09/veterans-trump-national-guard-la-protests
2 “President Donald Trump on Tuesday gave a campaign-style speech to the nation’s top military brass, suggesting that the Pentagon use American cities as “training grounds" for its troops in a remarkable break from decades of precedent that sought to keep politics and the military separate”. Do Blog Politico PRO, em 30/9.
https://subscriber.politicopro.com/article/2025/09/trump-military-cities-training-ground-00587977
Fica claro que Trump pretende rever o papel das forças armadas dos EUA, agregando à sua tradicional missão de ferramenta imperial para fora de suas fronteiras uma nova missão, que é tornar-se o ‘garante’ da lei e da ordem internas, à feição, quem diria, das forças armadas de grande parte do Sul Global. O estado atlético de seus generais não tem nada a ver com isso.
A GEOPOLÍTICA DA FOME E DO CLIMA
Por Georges Fexor, Karina Kato e Nelson Delgado
A rivalidade entre China e Estados Unidos vem, nas últimas décadas, reconfigurando a geopolítica global. Nessa disputa, o Brasil busca se beneficiar de um posicionamento neutro, o que explica sua recente resistência em integrar a Nova Rota da Seda.
Essa rivalidade, todavia, afeta um dos setores mais emblemáticos e controversos da projeção internacional do Brasil: o agronegócio. Um dos efeitos mais visíveis foi o avanço da participação do dragão asiático na pauta exportadora. Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA), enquanto em 2000 apenas 2,7% das exportações do agro tinham como destino a China, em 2025 esse percentual já alcança cerca de 30%. A soja é o principal vetor dessa integração: em 2024, 73% de toda a soja exportada pelo Brasil foi para o país asiático.
Em 2025, o acirramento das tensões comerciais entre Washington e Pequim resultou em uma presença ainda maior da China nas exportações brasileiras, após a decisão chinesa de suspender, em maio, as compras de soja de origem estadunidense. No final de outubro, Donald Trump e Xi Jinping selaram uma trégua que levou à retomada gradual dessas importações. Dada sua capacidade de produção baseada na abundância de terra e água, a expectativa, contudo, é que o Brasil continuará ocupando posição estratégica como um dos principais fornecedores da China.
Esses eventos expõem as contradições dos dois principais vetores da estratégia externa do Brasil: destacar-se como potência ambiental e alimentar. O país é hoje um dos principais players do mercado de commodities agrícolas, e projeções da OCDE e FAO indicam que esse protagonismo deve se manter. Essa integração, porém, veio acompanhada da reprimarização da economia: mais de 60% do total das exportações concentram-se em produtos básicos. Exportamos grãos, carnes e minérios, e importamos fertilizantes, defensivos, petróleo refinado e maquinário. Ou seja, o Brasil é uma potência agrícola, mas segue crescentemente dependente do exterior.
Essa forma de se projetar internacionalmente afeta os mercados de fatores no país, com efeitos deletérios sobre a desigualdade e a estrutura produtiva. Por exemplo, o boom das commodities, a demanda por biomassa e combustíveis alternativos e a financeirização pós-2008 favoreceram a financeirização dos mercados de terra. Segundo a consultoria Valoral Advisors, o número de fundos voltados para agricultura e recursos naturais saltou de 41 em 2005 para mais de 1.000 em 2025. Esse processo favorece a difusão de comportamentos especulativos e a pressão pelo seu controle, descolando os preços fundiários da lógica produtiva.
Essa inserção internacional tem efeitos diretos sobre a segurança alimentar. O aumento das exportações pressiona preços internos e favorece a expansão de grandes áreas de monocultivos de grãos. Desde 2000, as áreas de soja cresceram 176% e as de milho, 61%. O país pode até se autoproclamar o “celeiro do mundo”, mas ainda registra, segundo a FAO, cerca de 35 milhões de pessoas com dificuldade de alimentar-se.
A promessa de conciliar produtividade e preservação — o chamado land sparing — esbarra na realidade. Em um contexto de aumento da demanda por commodities e de existência de uma fronteira aberta, o crescimento da produção significa que o acúmulo de capital tende a ser reinvestido na compra de novas terras em áreas de fronteira, estimulando o desmatamento e contribuindo sobremaneira para o aumento dos gases de efeito estufa. Dados do SEEG mostram que a agropecuária responde por 74% dessas emissões no Brasil, sobretudo pela mudança no uso da terra. De 2019 a 2024, o país desmatou uma área equivalente à Coreia do Sul, principalmente no Cerrado e na Amazônia, onde persiste um desmatamento relacionado ao avanço da fronteira agrícola, às atividades extrativas e à instalação de projetos de energia renovável.
Esse modelo de inserção global aprofunda ainda mais desigualdades históricas no campo brasileiro. Nossa estrutura fundiária segue entre as mais desiguais do mundo, com índice de Gini da terra de 0,864 em 2017. A desigualdade se manifesta igualmente nas características sociológicas das principais cadeias produtivas do agronegócio. Segundo o Censo Agropecuário de 2017, 88% dos produtores na cadeia da soja são brancos (como no café, na pecuária, no fumo e na cana). Quanto maiores as propriedades, menor é a presença de mulheres no controle da terra. Além disso, povos indígenas e comunidades tradicionais seguem enfrentando conflitos fundiários e violência, muito distante do sucesso aclamado pelo “agro”.
Às vésperas da COP30, o Brasil tenta projetar liderança ambiental e alimentar. Mas essa narrativa se fragiliza diante das contradições do atual padrão produtivo e financeiro do meio rural. Assumir liderança exige políticas voltadas à soberania tecnológica, à promoção de um sistema alimentar sustentável, inclusivo e que garanta os direitos dos povos indígenas e tradicionais, ou seja um sistema bem diferente daquele que promove degradação ambiental e violência. A verdadeira liderança brasileira deveria nascer da capacidade de articular produção, justiça social e sustentabilidade — uma determinação que se mostraria estratégica e transformadora no tabuleiro global do século XXI.
ARGENTINA, UM PAÍS EM ESTADO DE "FALÊNCIA CRÔNICA"
Por José Luis Fiori
Desta vez, a “operação de salvatagem”1 da Argentina foi feita ao estilo de Donald Trump, como se fosse um grande espetáculo midiático, envolvendo diretamente o presidente americano, seu secretário do Tesouro, Scott Bessent, e os representantes dos principais bancos credores da Argentina liderados por Jamie Dimon, CEO do JP Morgan Chase.
No mês de setembro de 2025, a Argentina encontrava-se em situação pré-falimentar, sem recursos para pagar o serviço da sua dívida com os bancos internacionais e com o FMI. O valor do peso estava em queda livre, e previa-se a derrota do presidente Javier Milei nas eleições parlamentares do dia 26 de outubro, seguida de uma corrida contra o peso e uma explosão inflacionária. A comunidade financeira internacional já antecipava uma nova moratória da dívida externa argentina, criando pânico nos mercados financeiros internacionais, tanto em Wall Street como na City de Londres.2
Foi nesse contexto emergencial que Scott Bessent anunciou, no dia 15 de outubro, a intervenção direta do Tesouro Americano, comprando pesos numa operação de swap loan de US$ 20 bilhões, para impedir o colapso da moeda “portenha” às vésperas das eleições parlamentares. E logo em seguida, no dia 22 de outubro, desembarcaram em Buenos Aires os representantes dos quatro maiores bancos americanos – J.P. Morgan Chase l, Goldman Sachs, Bank of America e Citigroup –, incluindo o ex-primeiro-ministro inglês Tony Blair, que agora é uma figura de proa do J.P. Morgan Chase International. E em poucas horas foi montado um pacote de ajuda privada de US$ 20 bilhões, totalizando um resgate de US$ 40 bilhões, desta vez sem a participação do FMI.
Esse tipo de intervenção externa na economia argentina não é um fenômeno novo nem excepcional. Basta dizer que, desde os anos 50, a Argentina já recorreu mais de 20 vezes à ajuda emergencial do FMI. E, hoje, a Argentina é o país que tem a maior dívida do mundo com o Fundo, à frente da Ucrânia, que aparece em segundo lugar, depois de três anos de guerra. Somando tudo, a Argentina recebeu nesses oitenta anos cerca de 35% do montante total de US$ 164 bilhões emprestados pelo FMI para todos seus clientes ao redor do mundo.1
1 Nome técnico dado a um conjunto de providências a serem tomadas para um resgate e/ou manutenção da vida após um grande desastre.
2 Financial Times. Investors bet Argentina will devalue peso despite $40 bn USS rescue effort. 23 October 2025.
Entre 1976 e 1981, durante a última ditadura militar argentina, o ministro de Economia Martinez de Hoz utilizou pela primeira vez a estratégia de fortalecimento artificial do peso frente ao dólar, como forma de legitimar o regime militar, dando aos argentinos um poder de compra internacional inflado. A política econômica do ministro Hoz facilitou a especulação financeira e enriqueceu um setor da sociedade argentina, permitindo-lhe acumular dólares a baixo custo, deixando, entretanto, uma dívida externa que se tornou impagável depois do “choque” das taxas de juros de Paul Volcker em 1979, provocando uma crise econômica e uma escalada inflacionária que contribuíram decisivamente para a queda do governo de Reynaldo Bignone e o fim da ditadura militar, em dezembro de 1983.
Para enfrentar esta crise econômica, o então presidente do Banco Central da Argentina, Domingos Cavallo, transferiu a dívida privada para o Tesouro Nacional em 1982, enquanto sucessivas desvalorizações do peso fizeram com que a inflação doméstica e o dólar disparassem. Assim mesmo, o Estado só conseguiu cobrir parcialmente os juros da dívida alimentando ainda mais a inflação e o endividamento recorrendo a novos financiamentos externos. Seguiu-se o governo do presidente radical, Raul Alfonsin, e o fracasso do seu Plano Austral de combate à inflação, culminando com sua própria renúncia seis meses antes do fim do seu mandato, em 8 de julho de 1989.
No início da década seguinte, o mesmo Domingo Cavallo, agora na condição de ministro da Economia do governo peronista de Carlos Menem, voltou à estratégia de fortalecimento artificial do peso, através da sua Lei da Convertibilidade, aprovada em 1991, que estabeleceu um câmbio fixo entre o peso e o dólar, e representou na prática a “dolarização” da economia argentina. Seu objetivo era conter a inflação, mas acabou causando, sete anos depois, uma nova explosão hiperinflacionária que levou ao colapso da economia argentina e a uma crise política sem precedentes. O novo presidente radical, Fernando de la Rua, eleito em 1999, renunciou em 2001, e em apenas duas semanas a Argentina teve cinco presidentes, seu sistema monetário se desintegrou e a sociedade argentina esteve à beira do caos. Para culminar, o presidente interino, Adolfo Rodrigues Sá, decretou – no dia 23 de dezembro de 2001 – a moratória da dívida argentina, dando um calote na “comunidade financeira internacional” de US$ 93 bilhões.
1 The New York Times International Edition. Staking taxpayer Money on Argentina. 20 October 2025.
Depois disto, durante o período dos governos peronistas de Nestor e Cristina Kirchner, entre 2003 e 2015, a Argentina conseguiu honrar o serviço da sua dívida externa, graças aos preços extraordinários das commodities argentinas no mercado internacional. Mas em 2018, o presidente conservador Mauricio Macri voltou ao FMI, e obteve um empréstimo de US$ 45 bilhões, o maior que já havia sido concedido em toda a história da instituição. Entre seus objetivos não declarados, estava a reeleição do próprio presidente Macri em 2019, mas ele foi derrotado já no primeiro turno, e seu sucessor, o peronista Alberto Fernández, passou a maior parte do seu governo renegociando uma forma mais elástica de pagamento do serviço da dívida com o FMI.
O insucesso econômico de Alberto Fernández contribuiu diretamente para a vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais de 2023, com sua proposta ultraliberal de "eliminação do Estado" e "dolarização da economia", voltando uma vez mais à tese ortodoxa e neoliberal de que a inflação é uma consequência dos abusos da "elite política" e de sua gastança fiscal. Um ano e quatro meses depois da sua posse, em abril de 2024, Javier Milei bateu às portas do FMI, onde foi recebido com entusiasmo pela sua presidenta, Kristalina Georgieva, e recebeu mais um empréstimo de US$ 20 bilhões, sem que a Argentina tivesse conseguido pagar um centavo de sua dívida de US$ 45 bilhões contraída por Mauricio Macri em 2018. E agora, seis meses apenas depois dessa ida ao FMI, Javier Milei já teve que ser socorrido uma vez mais pela nova operação de salvatagem da Argentina, no valor de US$ 40 bilhões, organizada por Donald Trump, Scott Bessent e Jamie Dimon.
Numa matéria de destaque no jornal New York Times sobre a Argentina, dia 23 de outubro, o articulista se pergunta com um certo ceticismo sobre o que passará se, no ano de 2026, o governo argentino não tiver recursos – uma vez mais – para honrar seus novos compromissos?
Nesse ponto, para responder com franqueza ao New York Times, há que ter claro que a Argentina não pagará jamais a sua dívida externa. Não tem a menor condição de fazê-lo, mas este não é e nunca será um grande problema. O FMI e os bancos privados rolarão mil vezes o passivo internacional da Argentina, desde que seu governo siga a cartilha ortodoxa do FMI. Afinal, nem os bancos privados nem o FMI vivem das dívidas pagas; eles vivem das novas dívidas contraídas e do pagamento regular de seus juros e demais serviços. O sonho da oligarquia econômica e da elite política conservadora argentina sempre foi estabelecer uma “relação carnal”1 com os Estados Unidos, transformando a Argentina em um Dominium norte-americano, como foi o caso de Canadá, Austrália e Nova Zelândia com relação à Inglaterra – mesmo que a cada nova crise e “ajuste” ou “arrocho interno”, a sociedade argentina fique mais pobre e subdesenvolvida, coisa que a Argentina nunca foi no passado.
De qualquer maneira, a grande questão que o New York Times não se coloca é saber se os Estados Unidos – depois de Donald Trump – quererão assumir o custo de um Dominium na América do Sul, ou preferirão apenas manter a Argentina na condição de um vassalo de segunda linha (como outros pequenos países, tipo Equador, El Salvador, Guatemala etc.) “rolando sua dívida” de tempos em tempos, desde que os argentinos se comportem bem, sejam obedientes e rezem pelo catecismo do FMI.
Neste novo modelo de vassalagem, o país paga sua dívida com seus recursos mas segue endividado em dólares.
1 Expressão utilizada por Guido di Tella ao referir-se ao objetivo central de sala política externa, na condição de Chanceler do governo peronista de Carlos Menem, entre 1991 e 1999.














